Assim como em Bom Dia, Noite, o filme anterior do cineasta Marco Bellocchio a estrear em circuito comercial no Brasil, Vincere ("vencer" em italiano) aborda a relação frenquentemente conflituosa que Igreja e Estado mantêm na Itália. Desta vez, voltamos à primeira metade do século 20 para acompanhar a história real de Ida Dalser, que morreu sozinha tentando convencer a todos que era esposa de Benito Mussolini.
O filme começa com o futuro líder fascista (vivido por Filippo Timi) falando para um grupo de católicos de Trento, em nome do grupo socialista do qual rapidamente se tornaria porta-voz, que Deus não existe. A ousadia de Mussolini encanta Ida (Giovanna Mezzogiorno), e os dois logo se tornam amantes às vésperas da Primeira Guerra Mundial. Diz a história oficial que o primeiro e único filho do casal, Benito Albino Mussolini, nasceu em 1915 - e o pai o reconheceu legalmente, ainda que naquele mesmo ano tenho se casado com outra mulher, Rachele (Michela Cescon).
Sem saber de Rachele, Ida já havia vendido suas posses para bancar o panfleto do então jornalista militante - e no momento em que chega ao poder, nos anos 20, já autoproclamado Il Duce (O Líder), Mussolini deixa Ida. A briga dela por ser reconhecida a primeira esposa do ditador acaba dentro de um hospício. Por anos Ida viveu enclausurada como uma doente mental em instituições administradas, ironicamente, pela Igreja.
A crítica de Bellocchio à promiscuidade entre os católicos e os políticos - uma relação antes de mais nada geográfica, uma vez que o Vaticano fica no coração da capital política da Itália - toma toda a segunda metade do filme e alcança seu ápice, justamente, quando o Duce faz as pazes com a Igreja em público e no papel. Mas não é isso que faz de Vincere uma obra-prima, e sim a análise de como se constrói uma imagem política e como o discurso de Mussolini se opõe à palavra de Ida Dalser.
Sedução do poder, ímpeto para a guerra e outras virilidades à parte (é ótima a cena em que Mussolini busca a sacada do apartamento depois de transar com Ida, como se quisesse contar a todos a sua performance), Bellocchio coloca Benito e Ida num mesmo degrau - a palavra dos dois tem o mesmo valor. Dá pra enxergar Vincere como um longa dividido em dois, primeiro o teste da honra de Mussolini e depois, na segunda metade, o teste da honra de Ida.
Como sabemos que o ditador renega o que havia dito na primeira cena do filme (que Deus não existe, na opinião dele), então a palavra de Mussolini não vale nada. Não por acaso, Bellocchio substitui a figura do ator Filippo Timi pela do Duce real na segunda metade - afinal, a persona tomou o lugar do homem. E Ida? Ela só precisava mentir para se ver livre do martírio no sanatório, mas não abre mão da sua palavra, não dissimula. Não cria uma persona, enfim.
É uma aula de como substitui-se, para fins programáticos, a imagem do homem pela do timoneiro da nação - o que implica até comparar Mussolini a Jesus Cristo em certa passagem. O filme de Bellocchio tem toda uma sofisticada discussão sobre o que é ser político e sobre a construção de uma imagem política (mesmo via cinema, via metalinguagem, como acompanhamos em diversos momentos na primeira metade), mas também é bastante acessível a todos os tipos de público. Sua força aberta a todo espectador, visualmente, está na mimetização do panfleto de guerra. O título do filme é só uma das muitas palavras-de-ordem que saltam a tela, montadas com fusão às imagens encenadas e a outras imagens de arquivo, e dão ao filme uma cara de vídeo de marcha popular. É um recurso que pode parecer datado, mas tem efeito potente.
Por fim, qualquer semelhança com regentes correntes da Itália, chegados a histrionices e a contar vantagens na cama, não é só coincidência. Vincere fala sobre Mussolini, fala sobre Berlusconi, e serve para a política de modo geral.