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O primeiro vislumbre que se tem de Barbara Stanwyck em Pacto de Sangue (Double Indemnity, 1944) é arrasador: ela desce uma escada e a câmera de Billy Wilder segue seus pés e o tilintar de uma tornozeleira. Parece banal, mas nesse sexy deslizar, degrau por degrau, o espectador é irremediavelmente fisgado. Fica claro que ali está o tipo de mulher a ser evitado a todo custo.
Phyllis Dietrichson, a personagem de Stanwyck, é sensual, perigosa e irresistível. Enfim, a femme fatale por excelência dessa obra-prima do cinema noir. Baseado no romance de James M. Cain, com roteiro de Raymond Chandler, Pacto de Sangue é mais que um filme; é um espetáculo grandioso em que impera a angustiante sensação de que as coisas não vão acabar bem. A intuição não poderia ser mais certeira: nessas redondezas sombrias as coisas raramente acabam bem. Por aqui uma linha tênue separa a algazarra do submundo e da tranqüilidade do subúrbio.
Essa promiscuidade é a força motriz do noir. Se já existiu um gênero cinematográfico politicamente incorreto até a medula, aqui está ele: sexo, assassinatos, drogas, mulheres fatais e corrupção costumam compor o leitmotiv das produções que exploram de maneira hábil o que há de pior na natureza humana.
E foi, justamente, nos grandes noirs das décadas de 40 e 50 que o diretor Brian DePalma buscou inspiração para voltar à cena. E em grande forma, diga-se.
Dália Negra (The Black Dhalia, 2006) foi realizado com primorosa atenção às filigranas do gênero e com uma paixão bem evidente pelo cinema praticado na Hollywood da primeira metade do século 20.
O filme começa com Bucky Bleichert (Josh Hartnett) se preparando para uma luta de boxe. Ele, Mr. Ice, irá enfrentar seu colega policial Lee Blanchard (Aaron Eckhardt), Mr. Fire, num combate que vale mais do que dinheiro, vale uma parceria e promoção para ambos.
Bucky Bleichert narra o filme e conduz o espectador pelos meandros da polícia, dos casos resolvidos e dos mal-resolvidos. Os dois pugilistas se tornam a sensação da polícia. Bucky passa a fazer parte da vida de Lee e Kay (Scarlett Johansson), a namorada loira e inebriante de seu parceiro.
Quando tudo parece bem, um acontecimento externo acaba por atuar como agente catalisador da tensão sexual do triângulo. Elizabeth Short (Mia Kirshner) é encontrada morta à beira de uma estrada. Ela fora estripada, à moda de Jack, e em seu, outrora, belo rosto, um sorriso sinistro foi forçado de orelha a orelha.
Bleichert e Blanchard são encarregados do caso, que passa a ser conhecido como o assassinato da Dália Negra, apelido pelo qual a vítima era conhecida. No curso das investigações, surge a decadente Madeleine Linscott (Hilary Swank), ricaça empenhada em construir uma reputação de devassa. Aqui está o único problema do elenco. Apesar de ser uma grande atriz, Swank foi mal escalada. Ela não tem a envergadura de uma mulher fatal e parece desconfortável no papel - bem ao contrário de Scarlett Johansson, sexy como uma Lana Turner. Hilary convenceria mais se desafiasse Mr. Ice para uma luta de boxe do que quando o convida para a intimidade da alcova.
Mas esse é um detalhe menor, devidamente suplantado pela beleza das imagens, pela trilha sonora na medida (repare na ótima versão de K.D. Lang para Love for Sale, de Cole Porter) e pelo roteiro impecável - adaptação do romance de James Ellroy.
O escritor usou o assassinato real de Betty Short como ponto de partida para a ficção. Ele mesmo tem uma ligação pessoal com o caso: nasceu um ano após a morte da Dália Negra e onze anos mais tarde, sua mãe também seria assassinada.
Dália Negra é o melhor DePalma das últimas décadas. O diretor traduziu para as telas a essência dos personagens amorais do romance policial, suas tramas intrincadas e explorou com inteligência uma referência ao grande clássico do cinema mudo, o tocante O homem que ri (The Man Who Laughs, 1928), de Paul Leni.
Além disso, DePalma filma como um voyeur. Em cenas chave, o espectador tem a impressão de que os personagens estão sendo observados. E teme por eles. Mas quando há um corte, percebe-se que não havia ninguém. Ou melhor: era só a câmera de Brian DePalma.