Cena de Diamand Brut (Reprodução)

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Crítica

No cabo de guerra entre condescendência e empatia, Diamant Brut só sai perdendo

Atriz Malou Khebizi, no entanto, é primeira candidata séria à Palma de Ouro da categoria

15.05.2024, às 17H30.
Atualizada em 15.05.2024, ÀS 20H27

A arte pode ser feia? A arte sobre coisas feias precisa ser feia? Qual é o ponto da arte feia, da arte da indignidade, da sujeira, do degradamento moral e físico do ser humano? Se o ponto é nos mostrar que a feiura existe, oras, isso a gente já sabe. Que existe o mal, que o mal nasce dos cantinhos escuros e úmidos da estrutura socioeconômica desumanizada na qual se apoia o mundo contemporâneo, que esse mundo corrompe e separa, ao invés de cultivar e unir… tudo isso, a gente já sabe. E não é que haja algo de errado com o cinema que nos diz o que a gente já sabe, mas em certo ponto, depois de tantas reiterações das mesmas histórias, continuar mostrando a podridão do mundo se torna uma estratégia de cortejo do prestígio mais do que uma missão honrada do artista.

Diamant Brut, filme de estreia da diretora Agathe Riedinger exibido em competição no Festival de Cannes 2024, passa muito perto de ser só mais uma produção que busca esse prestígio ao expor, exotizar, escrotizar, a ferrugem feíssima que come o cotidiano das classes trabalhadoras pelas beiradas. E não me leve a mal: de um ponto de vista puramente estético, Riedinger mostra potencial verdadeiro como cineasta neste seu primeiro longa-metragem. Com o diretor de fotografia Noé Bach (Little Girl Blue) e a montadora Lila Desiles (Donas da Bola), ela cria um filme que prospera em cortes nervosos que acompanham o estado de ânimo oscilante da protagonista, sempre à beira de um ataque de nervos, mas que também explora com gosto o território visual do horror ao abraçar luzes neon e câmeras lentas em seus momentos mais delirantes.

Mas será que o horror é território adequado para caminhar nessa história em específico? Julgue por si mesmo: Diamant Brut é a história de Liane (Malou Khebizi), uma jovem francesa que sonha em aumentar a sua contagem de seguidores nas redes sociais - conseguidos com selfies sensuais, dancinhas de TikTok e a ostentação de um estilo de vida que ela não consegue manter - e eventualmente ser selecionada para participar de um reality show, de preferência o seu amado Fantasy Island. Uma vivência marcada pelo abandono da mãe quando criança, o retorno a um lar fraturado na adolescência, e pela influência de imagens hiperssexualizadas de feminilidade bem-sucedida na mídia.

O filme é inteligente ao identificar e apontar onde os conceitos de feminino da contemporaneidade são construídos (a saber, no Instagram e nos reality shows), e quais são as armadilhas dessa construção. O roteiro, também assinado por Riedinger, claramente quer se engajar com a própria ambivalência em relação ao feminismo dessa geração, aos conceitos de empoderamento que essas mulheres e meninas internalizaram e repetem, em discursos desafiadores bem decorados. A sexualidade como liberação e como objetificação, o uso do vulgar como arma de ativismo e quando ele ultrapassa o território da exploração. “Quem é desejada tem o poder”, diz Liane em certo ponto do filme.

O que Diamant Brut não tem, no entanto, é o desprendimento necessário para tirar o seu próprio ego do caminho. Um pouco como sua protagonista, ele é um filme “de personalidade” até em seu próprio detrimento, se engajando com clichês da miséria e da degradação sexual feminina de maneira que não consegue camuflar certo desdém pela situação em que essas personagens se colocam - ou são colocadas, e que diferença faz para quem está observando de cima para baixo? Ao invés de tentar entender sua protagonista, portanto, Riedinger se limita a espremê-la de provação em provação, de náusea em náusea, para descobrir o que resta dela no final.

Por sorte, o que resta dela é a performance excepcional de Malou Khebizi. Atriz de primeira viagem, a francesa parece encontrar cada expressão e cada explosão de sua Liane em algum lugar profundo do próprio estômago, evitando a cada curva no caminho a caricatura que sua diretora parece tão disposta a fazer. Nas mãos dela, Liane é essencialmente uma mulher de paradoxos: toda olhares ressabiados e fugidios, mas de confiança inabalável em cada movimento, seja na hora de furtar das lojas no shopping ou na hora de brigar com uma amiga na balada. Se Diamand Brut evita tanto conversar com a personagem em seus próprios termos, Khebizi nos faz acreditar que essa é a única linguagem que ela conhece, e - ainda mais mágico - nos faz fluentes nessa linguagem também, quase instantaneamente.

Este é exatamente o tipo de performance do qual Lily Gladstone estava falando, na coletiva de imprensa do júri no primeiro dia do Festival de Cannes 2024: um trabalho que eleva e transforma o filme ao seu redor em uma obra muito mais interessante, emocionalmente falando, do que seria sem ele. Talvez Malou Khebizi não seja o bastante para salvar Diamant Brut do cabo de guerra entre condescendência e empatia no qual ele parece engajado, e do qual sai derrotado não importa qual lado vença na cabeça do espectador - mas, se a régua for essa citada por Gladstone, ela acabou de sair na frente na corrida do prêmio de Melhor Atriz.

Nota do Crítico
Regular