Em algum ponto das pouco mais de duas horas de Dias Perfeitos, o espectador começa a sentir que se tornou um conhecedor íntimo da casa de Hirayama (Koji Yakusho), protagonista do longa. Isso porque, enquanto acompanha o faxineiro por umas duas semanas de dias pouquíssimo excepcionais, o diretor Wim Wenders se dedica também a explorar e reexplorar as entranhas do pequeno sobrado onde ele vive, equilibrando com cuidado a repetição dos atos e movimentos da rotina do protagonista e a busca por ângulos de câmera novos (cortesia da fotografia metódica de Franz Lustig), que revelem um olhar expressivo para essa rotina.
Daí que a luz neon rosa que ilumina o quarto-estufa do segundo andar da casa se torna fantasmagórica ou convidativa, dependendo do contexto de cada cena. A janelinha ao lado da porta da frente, enquanto isso, vira instrumento para Wenders e Lustig emoldurarem a curta caminhada de Hirayama até seu carro durante uma manhã particularmente difícil, evidenciando subitamente a tensão voyeurística da proposta narrativa do filme. A cozinha-banheiro onde o protagonista escova os dentes de manhã, a escada estreita que dá para seu quarto, a salinha diminuta onde guarda seus livros… as marcas de uma vida “pequena” que por vezes parece claustrofóbica, por vezes reconfortante em sua simplicidade.
É nessa oscilação entre ajuste e desajuste, constância e quebra, que Wenders e seu corroteirista Takuma Takasaki constroem uma narrativa a partir da observação, em que conflitos vêm e vão pela vida de Hirayama sem revolucionar o mundo ao seu redor - seja por recusa dele ou só pela inércia fundamental de um sistema construído no pressuposto da repetição. Afinal, você não acorda para trabalhar todos os dias, e vai para os mesmos lugares, independente do que está acontecendo em outros cantos da sua vida? Wenders toma para si, em Dias Perfeitos, o trabalho de “cinematizar” esse paradoxo da previsibilidade dentro do caos, revelando um lado da condição humana que quase nunca tem vez no cinema.
Claro que Koji Yakusho é o maior aliado do diretor nesse sentido. Vencedor do prêmio de melhor ator no Festival de Cannes em 2023, o venerável astro japonês coroa décadas de carreira com uma performance que nunca perde de vista os machucados profundos que Hirayama carrega, fazendo da persistente gentileza do personagem um traço vivido, aprendido, talvez até necessário diante da crueldade de um mundo que ele conhece bem demais. Dias Perfeitos não foge das indignidades da rotina do trabalhador, da transitoriedade violenta de um mundo que se move rápido demais para que possamos pensar em consertá-lo, e Yakusho - frequentemente, em silêncio - acerta quando escolhe expressar todo o pesar acumulado desses revezes ao invés de fugir deles para sublinhar a “sabedoria” do protagonista.
Dias Perfeitos não é, então, uma glorificação elitista da rotina massacrante da vida no capitalismo tardio, ou um chamado ao otimismo ingênuo diante de um mundo em colapso sistêmico. O que ele faz, ao invés disso, é desvelar a luta valorosa por vislumbres de humor e beleza que ocorre todos os dias nas ruas, casas, bares, carros, parques e (até eles!) banheiros indiferentes de uma metrópole como Tóquio. Wenders filma a cidade sem esconder seu maravilhamento marcantemente estrangeiro, seja pelo design limpo das adições contemporâneas à paisagem ou pela tranquilidade idílica dos espaços tradicionais que permanecem nela, mas a estetização dos espaços nunca eclipsa o fascínio maior do diretor pelas pessoas que transitam e se integram a ele.
Passeando por superfícies de concreto ou grama, se enfileirando em engarrafamentos ou se amontoando em botecos e lojinhas minúsculas, as pessoas que povoam a Tóquio de Dias Perfeitos - encarnadas no protagonista Hirayama - precisam tratar de suas feridas, insatisfações e estresses enquanto obedecendo ao tique-taque implacável dos dias úteis. Encontrar algo de lúdico ou engraçado, forjar algum tipo de conexão, acreditar em algo de mais significativo, se mostra necessário diante da impossibilidade de parar esse relógio. Menos pontificação moral e mais reconhecimento resignado, portanto, o filme de Wenders abre espaço para um encantamento pelo banal que finalmente ultrapassa a presunção insincera que marca outros “filmes de arte” recentes que quiseram se aproximar da rotina.