Filmes dedicados a explorar um pouco mais de personagens de novela não são nenhuma novidade, mas tampouco são comuns. Talvez o título mais fresco na cabeça das pessoas seja Crô, saído do devaneio chamado Fina Estampa, novela de Aguinaldo Silva que foi ao ar em 2011. O filme inspirado no mordomo expansivo vivido por Marcelo Serrado, contudo, não depõe a favor da iniciativa.
Já a Dona Lurdes de Regina Casé sai direto da trama de Amor de Mãe, uma novela que passou por duas grandes provas: a de tentar dar à teledramaturgia diária uma abordagem estética que fosse mais desafiadora e criativa; e a de enfrentar a pandemia, que afetou a novela na reta final, interrompendo as gravações por mais de um ano e até criando a necessidade de reescrever capítulos. Mesmo assim, quem acompanhou Amor de Mãe consegue entender a resistência em deixar a personagem para trás.
Dona Lurdes é uma nordestina com um instinto materno comovente; dos seus cinco filhos, um deles – vendido pelo ex-marido quando ainda estavam no Nordeste – ficou desaparecido por décadas. Reencontrá-lo é a jornada da personagem na novela. Dona Lurdes, sempre com seus vestidos floridos, bolsinha atravessada, toalhinha e guarda-chuva, é a instituição da “mãe brasileira”. E Regina Casé interpretava a empregada doméstica de periferia com todo o seu carisma.
Pouco mais de três anos depois do conturbado fim da novela, Dona Lurdes retorna em versão cinematográfica, com roteiro da própria autora da novela, Manuela Dias, inspirado no livro Diário da Dona Lurdes — em que a personagem conta tudo que aconteceu com ela depois que seus filhos saíram de casa. Para os fãs da personagem que gostariam de saber um pouco mais sobre o “viveram felizes para sempre”, o filme é uma imersão divertida e cheia de momentos de “ahhh, então foi isso que aconteceu”. Para quem não acompanhou a novela, a experiência deve parecer não apenas incompleta mas também superficial.
Amor de Mãe (que não é só mãe)
Dona Lurdes - O Filme é simples, discreto, passa por pouquíssimos cenários e evita grandes acontecimentos para além da crônica urbana. Rian (Thiago Martins), o último filho a sair para morar sozinho, faz sua mudança e deixa a mãe sofrendo os sintomas da Síndrome do Ninho Vazio. O roteiro trata essa questão apenas como uma contextualização; Lurdes cumpre rapidamente aquele protocolo de montagem de cenas vendo TV, descabelada e sozinha. Situar a personagem nesse lugar aciona uma familiaridade, sobretudo levando em consideração que Paulo Gustavo já tinha feito a mesma coisa em Minha Mãe É Uma Peça.
Vez ou outra, um off de Dona Lurdes corta a cena; provavelmente porque desse modo as páginas do diário e os pensamentos da personagem podem ser impressos na narrativa. Contudo, assim como tudo no filme, isso também não é mais do que uma breve pitada. São pitadas dos filhos (em participações especiais), pitadas da narração em off, pitadas de sequências externas, pitadas de coadjuvantes (como Enrique Diaz e Maria Gal)... Robusto mesmo, só o carisma de Regina Casé, que parece não ter ficado um só dia sem viver a personagem.
Arlete Salles (que vive a vizinha extrovertida que fica amiga de Lurdes) e Evandro Mesquita (seu interesse amoroso) são boas adições do elenco. Os filhos todos também têm aparições divertidas para quem viu a novela. Além de Thiago Martins; Jessica Elen, Nanda Costa e Juliano Cazarré aparecem pouco. Chay Suede, que na novela vivia o filho perdido e por isso gerava mais expectativas, ganha mais cenas. A participação de Humberto Carrão como Sandro era para ter sido uma surpresa (ele também surpreendeu a atriz no set, que não sabia que ele voltaria), mas vazou pouco antes da estreia do filme. Sandro e Lurdes tinham uma química tão forte em cena, que foi difícil para a autora resolver a própria decisão de que ele não fosse o filho que a protagonista procurava.
Há em Dona Lurdes - O Filme um esforço limitado para justificar a existência do longa do ponto de vista da trama. De qualquer forma, não parece ser isso o que a direção de Cristiano Marques procura. Tudo o que acontece no filme em termos de viradas e conflitos é previsível e simplório. Na hora de trazer a personagem de volta, privilegia-se uma certeza de que a força da personagem está no que ela diz e em como ela diz.
Talvez não fosse necessário “esquetizar” o filme para colocar Lurdes em situações cômicas toscas; a personagem não era isso. O que a faz tão forte é a conversa com um dos filhos ou com uma amiga, numa mesa de café, em pé no corredor, sentada numa escada... O filme dá certo porque Lurdes está ali, falando; o bom texto que ela defende é que faz o caricatural dos acontecimentos ter um mínimo de verdade. Sua casa que esbanja realismo (um primor da direção de arte) e sua voz que transborda afeto são a epítome do que ela é capaz de nos fazer sentir.
Para quem não a conhecia, pode ser que o filme seja apenas uma diversão esquecível de fim de tarde. Para quem a está reencontrando, o filme acaba sendo como um almoço de domingo na casa da mãe: você pode começar o dia até não querendo ir, mas uma vez lá, tudo que você vai pedir é colo.