Hidetoshi Nishijima e Tôko Miura em cena de Drive My Car (Reprodução)

Filmes

Crítica

Drive My Car é um épico sobre quem conta histórias para salvar a própria vida

No filme de Ryûsuke Hamaguchi, a ficção é a graça redentora de um mundo cruel

16.03.2022, às 15H44.

O cinema contemporâneo está cheio de obras que posicionam que tudo ao nosso redor é na verdade uma história, incluindo nós mesmos. Basta olhar para o americano Frances Ha, o francês Retrato de uma Jovem em Chamas, o brasileiro Bacurau, o sul-coreano Parasita - são, todos eles à sua forma, filmes que reconhecem uma realidade tão mergulhada e tão dependente da ficção que é impossível desatar uma coisa da outra. Viver é contar uma história, eles nos dizem. Mais ainda, é contar uma história em cima de todas as histórias que já vieram antes da nossa.

Drive My Car escapa desse chavão, dessa conclusão precisa, mas já óbvia, com a destreza de quem olha para o mundo e ousa pensar de forma mais humana sobre ele. Ryûsuke Hamaguchi e seu colega de roteiro, Takamasa Oe, amarram diferentes contos do escritor japonês Haruki Murakami em um épico de quase 3h de duração no qual é impossível fingir que tudo é uma história - o rosto feio de uma realidade indomável, com seus finais não-finais insatisfatórios e suas impossibilidades de reversão, se intromete frequentemente demais no caminho dos protagonistas.

No lugar disso, Drive My Car nos apresenta a virtude um pouco menos confortável da ficção como salvadora. É um clichê ainda mais antigo dizer que histórias salvam vidas, mas Hamaguchi acredita nessa tese apaixonadamente, e coloca em cena personagens que a provam. Vide o diretor e ator de teatro Yûsuke Kafuku (Hidetoshi Nishijima), que mergulha em uma nova montagem da clássica Tio Vanya dois anos depois da morte da esposa, a roteirista de TV Oto (Reika Kirishima).

A visão de mortalidade, perseverança, redenção e eventual reencontro do bom e velho Chekhov se entrelaça com as relações que Kafuku desenvolve durante o período de ensaio da peça, principalmente com o impulsivo galã Takatsuki (Masaki Okada), que foi amante de Oto; com a introspectiva motorista Misaki (Tôko Miura), que tem sua própria tragédia para contar; e com a atriz surda Lee Yoo-na (Park Yu-rim), a única sul-coreana no elenco da peça, que encontra uma possibilidade de comunicação inédita ao se arriscar nos palcos.

Todos esses personagens estrelam momentos em que desenrolam as trajetórias trágicas que os levaram até o lugar onde os conhecemos. Hamaguchi é fascinado (não de hoje, como os fãs de seu cinema podem comprovar) com o simples ato de observar humanos falando de si mesmos, e encontra infinita variedade e dinamismo nessas cenas quase monologais. Por exemplo: Takatsuki conta a última história escrita por Oto para Kafuku dentro do carro durante uma viagem noturna, em uma sequência claustrofóbica lotada de pretos e marrons; já Misaki revela parte importante da sua vida ao protagonista durante uma visita a um memorial de guerra à beira-mar, filmado em takes abertos compostos de cinzas e brancos.

É importante notar, no entanto, que a insistência de Drive My Car em desvendar o passado de seus personagens serve principalmente para mostrar o que eles fazem com esse passado dentro do espectro da ficção. Há a ficção de Tio Vanya, é claro, mas também a ficção do laço paternal que Kafuku constrói com Misaki, do perdão que eles oferecem um ao outro no clímax do filme, do caso de amor fabuloso que Takatsuki precisa acreditar ter vivido com Oto. Ficções que dão forças para essas pessoas seguirem adiante, encarando não só o trauma da realidade já consumada, como também a incerteza do que se coloca adiante delas na estrada que se arrasta por baixo dos carros onde passam parte tão grande de suas vidas.

Com um elenco perfeitamente afinado aos personagens, sem elos fracos entre si (pessoalmente, a performance de Lee Yoo-na reverberou mais fundo, mas cada espectador terá sua preferida), Drive My Car não se tornou o primeiro filme japonês indicado ao Oscar de melhor filme à toa. Não que o país não tenha tido obras dessa magnitude antes, porque é claro que teve, mas poucos filmes dos últimos anos, de qualquer lugar do mundo, entenderam tão bem a ânsia terrivelmente humana por conexão que se desenvolve em uma contemporaneidade tão consumida por cinismo.

Hamaguchi nos lembra que a arte, nas milhões de formas que ela toma em nossa vida, sempre estará aqui para suprir essa ânsia. É um lembrete mais que oportuno.

Nota do Crítico
Excelente!