Um dos elementos que desde sempre constituem a ficção científica é uma certa vontade de futuro. Em clássicos do gênero como Duna, Fundação e O Fim da Infância, essa urgência da especulação se manifesta em tramas que se estendem por anos ou décadas, com saltos temporais vertiginosos entre capítulos. É como se a humanidade no imediato Pós-Guerra, quando essas obras foram escritas, em meio ao perigo nuclear e à corrida espacial, estivesse à beira da extinção ou da suprema evolução, e só uma narrativa que avançasse desesperada no tempo seria capaz de revelar qual dos dois desfechos é o verdadeiro.
Quando foi a última vez que você viu um filme cuja trama se passa ao longo de muitos anos? (Flashback não conta.) Não é fácil cravar quando a mudança aconteceu, mas ela é perceptível: ao longo das décadas o cinema americano foi deixando de usar os saltos temporais como um recurso narrativo essencial, e substituiu a necessidade dessas elipses por tramas cada vez mais curtas e condensadas. Nossas gerações cresceram com histórias que se passam em algumas horas, dias, uma semana, meses - e ao mesmo tempo a metragem média desses filmes só aumentou.
Dá pra dizer que a chegada de Duna aos cinemas, numa época em que até um livro fino como O Hobbit se torna uma trilogia de filmes, é um novo marco nessa tendência. A adaptação do diretor Denis Villeneuve usa duas horas e meia para contar dois terços do livro. É um desenrolar paciente e cerimonioso da história de Paul Atreides (Timothée Chalamet), o herdeiro de uma dinastia nobre que estaria em vias de se extinguir não fosse Paul o objeto vivo de uma profecia que promete mudar todo o arranjo político do Império galáctico.
Dizer que Villeneuve foi pedante ou caprichoso nessa escolha narrativa é ignorar a curva da História que o precedeu. Quando David Lynch adaptou Duna em 1984 - e compactou o livro de 600 páginas em 2h17 que hoje parecem um resumo de vestibular - a cultura nerd estava apenas engatinhando na sua tomada do mainstream. São esses 40 anos transcorridos que hoje permitem que Villeneuve tenha o privilégio de fazer um Duna reverente, inconclusivo e bastante literal na sua adaptação.
Acontece que o Duna de Frank Herbert, a exemplo dos romances de Isaac Asimov e Arthur C. Clarke, tira muito da sua força justamente dos saltos no tempo e da aceleração da narrativa. Influenciado pela história de T.E. Lawrence (a estreia de Lawrence da Arábia acontecera em 1962, três anos antes da publicação de Duna), o livro de Herbert adapta os mitos de Maomé para um contexto de colonialismo europeu e faz de Paul Atreides um porta-voz de revoluções maiores. Em Duna, saber se Paul vingará seu sobrenome é um detalhe menor, porque o principal é entender se ele conseguirá acompanhar a velocidade de uma roda do tempo que já está em movimento.
Já Villeneuve não tem essa urgência, embora espalhe no filme flashes do futuro, nas visões de Paul assombradas pela jihad fremen. A fidelidade a que o diretor se propõe é mais tecnocrática, por assim dizer; o filme se ocupa em dar textura, cor, volume e tamanho para naves, palácios, armas, corpos e objetos numa exposição que se confunde com catalogação de nomes e conceitos. Quando altera o material do livro, o roteiro o faz para dar ao desfecho do filme algum caráter de clímax (o duelo com Jamis é adiantado e a despedida de Liet Kynes se presta a criar suspense para a revelação da montaria dos vermes).
O fato de não ter tanta vontade de futuro assim não é o principal problema de Duna. Villeneuve cria para si mesmo um impasse ao se propor contar um épico de câmara: um filme que se pretende grandioso no escopo e no tom mas cuja ação transcorre essencialmente como um drama de intrigas palacianas. O minimalismo que o diretor persegue de forma obcecada faz Duna parecer por vezes uma versão de teatro do livro, em que todo o efeito dramático depende de como a performance do elenco preenche o espaço do proscênio. Villeneuve não prima pela encenação desses movimentos (o filme é especialmente frustrante nas coreografias de ação), o que esvazia Duna de potencial.
As boas escolhas de direção de arte acabam sendo muito pontuais, e ineficientes no todo. Uma que vale menção é o contraste de cores, elaborado para funcionar de maneira insidiosa: tudo é tão bege em Duna que os poucos pontos de cor (como um personagem negro que se revela no início do filme um arauto da morte, ou o sangue bem vermelho que pinga da adaga nas visões de Paul) se impregnam de assombro nesse cromatismo. É como se estivéssemos diante de um Sin City, um filme que aposta tudo no alto contraste para fins dramáticos, mas que não assume isso para o espectador tão descaradamente - o que potencializa o efeito.
Ainda assim, essas boas soluções parecem ser um fim em si mesmas. Nas mãos de um Tarsem Singh ou um Alex Proyas, este Duna talvez saísse menos rebuscado mas um pouco mais despudorado. A seriedade com que Villeneuve empreende cada detalhe tem um contra-efeito bizarro, que é isolar cada parte do todo. Os próprios personagens parecem habitar cada um o seu próprio mundo, e pouco se cruza entre eles, o que pode ser mortífero para uma história que depende da intriga para avançar. É como se criar conflito fosse por si só uma desvirtuação. Neste Duna as coisas se encenam com dificuldade, quase com pesar - resultado direto da obsessão pela fidelidade, em um filme enrijecido pelo respeito ao material original e por toda a solenidade cabisbaixa que decorre desse respeito.
Voltemos então às elipses radicais de tempo, que Hollywood hoje transformou num recurso difícil de usar, quase agressivo. No livro, Frank Herbert às vezes termina um capítulo sugerindo um novo conflito, uma nova intriga - porque afinal estamos diante de personagens superpoderosos e plenos de motivos, capazes de influenciar o destino de populações - apenas para aplicar em seguida um salto de meses que nos deixa roendo as unhas sobre os entrementes. Ou seja, em boa medida, Duna funciona na promessa de futuro e na negação dessa entrega. Ao subestimar esse recurso - porque afinal está tão desesperado para registrar com cerimônia o tempo presente - o filme ignora a força da ausência, da especulação, enfim, de tudo aquilo que é intraduzível em palavras e imagens.