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Premiado com o Urso de Ouro no último Festival de Berlim, Em Segredo (Grbavica, 2006) é um dos raros filmes produzidos pela Bósnia. Apesar do sucesso internacional de Emir Kusturica, seu cineasta mais famoso, o ex-território iugoslavo é o único país da Europa que ainda não possui uma câmera 35 mm., ou mesmo um laboratório de cinema, o que torna sua produção extremamente dependente dos países vizinhos ou co-produtores.
Dificuldades como essa fazem parte do cotidiano de seus pouco mais de 4 milhões de habitantes. Logo após a independência da Iugoslávia, em 1992, uma guerra de três anos envolvendo sérvios e croatas destruiu completamente sua capital Sarajevo e levou à morte de mais de 100 mil bósnios e à fuga de outros 2 milhões.
É nesse país que tenta se reconstruir - e no qual a primeira geração nascida no pós-guerra começa a tomar contato com as histórias e conseqüências de tal conflito - que encontramos Esma e Sara, mãe e filha que, juntas, tentam levar uma vida normal, apesar dos escombros deixados pela guerra e das feridas de um passado obscuro.
Nessa sua estréia em longas-metragens, a diretora Jasmila Zbanic consegue construir um relato pungente e dramático. Aqui, as histórias particulares não servem apenas para ilustrar a situação de um país, mas possuem uma força própria, uma verdade que atinge o espectador principalmente pela interpretações precisas de Mirjana Karanovic (conhecida através dos filmes de Kusturica) e Luna Mijovic (em seu primeiro papel no cinema).
O filme começa com a câmera perscrutando um grupo de mulheres, atendo-se pausadamente em cada rosto, até escolher o de Esma, que acompanharemos ao longo da projeção. Cuidando sozinha da filha, Esma precisa manter dois empregos e ainda contar com a ajuda do governo para sobreviver em meio à crise que se abate sobre o país. Enquanto isso, a adolescente Sara é levada pelos colegas de escola a se interessar cada vez mais pela história de seu falecido pai, morto durante a guerra. O incômodo que tal interesse causa em sua mãe, porém, lhe mostra que muitas feridas do passado ainda não cicatrizaram.
Conforme o relacionamento entre as duas vai se tornando mais tenso, o espectador é levado a acompanhar a extensão e profundidade das seqüelas que a guerra deixou sobre essas pessoas, até o ponto em que a situação se torna insustentável e verdades abafadas a todo custo até então acabam vindo à tona.
Em uma das últimas seqüências do filme, Zbanic nos leva de volta à cena inicial. Temos os mesmos rostos do início, mas nosso olhar sobre eles já não é mais o mesmo. Tivemos acesso ao que se esconde por trás daqueles semblantes imóveis e silenciosos e a história de cada uma delas grita para vir à tona como a de Esma.
Ao invés de optar por um final forte, porém fatalista, a diretora termina o filme com uma fresta de esperança para seus personagens, apostando na verdade como única forma de se enterrar o passado e seguir adiante (como o ônibus que, ironicamente, leva Sara de volta à origem de tudo). Em tempos bélicos como o nosso, essa aposta na capacidade redentora da humanidade foi, provavelmente, fundamental para a aclamação em Berlim.
Leonardo Mecchi é colaborador do site cinequanon.art.br