Aparentemente, o Festival de Cannes 2024 amou Emilia Perez. Ao fim de sua exibição de estreia no evento, o musical dirigido por Jacques Audiard recebeu a maior ovação do festival até agora, o que por sua vez levou a burburinhos sobre o suposto favoritismo do título à Palma de Ouro deste ano. É complicado cravar as verdadeiras chances do longa nesta corrida (aplausos do público e boa nota dos críticos são indicações, mas quem decide mesmo é o júri presidido por Greta Gerwig) - de qualquer forma, o fato é que, fora de Cannes, Emilia Perez dificilmente vai encontrar um público tão caloroso, e os motivos para isso são muitos.
Primeiro, o filme é um musical, e ainda por cima um musical não-diegético, o que significa que os personagens de Emilia Perez fazem exatamente o que os odiadores de musicais mais odeiam em musicais: eles param no meio de cenas dramáticas - às vezes, até de cenas de ação - para dançar e cantar as faixas originais compostas pela artista francesa Camille. E o diretor Audiard, venerado por seus dramas de escopo épico que por vezes atacam questões sociais (vide O Profeta, Ferrugem e Osso, Dheepan), deixa aqui suas tendências mais formalistas, que anteriormente só escapavam pelas rachaduras da carapaça acadêmica, tomar o centro do palco.
Em uma modernização audaciosa dos musicais de simetria colorida de Busby Berkeley, Audiard comanda números musicais que não se escondem por trás da despretensão “realista” de um Os Miseráveis ou um Cyrano, por exemplo. Existe, sim, a proposta dos vocais ao vivo que remete a uma colocação do musical no “mundo real”, mas Audiard não hesita em quebrar essa proposta para efeito dramático, seja ao misturar formatos diferentes de filmagem ou brincar com a transformação do espaço cotidiano em palco, do movimento do caos urbano em coreografia.
No primeiríssimo número do filme, por exemplo, Zoe Saldaña começa a cantar para si mesma em um mercado de rua e logo o comércio ao seu redor se torna parte da música, com mesas se movendo de um lado para o outro e vendedores juntando-se a ela no asfalto para fazer poses de dança variadas na direção da câmera. Em outro momento musical, Selena Gomez canta e dança em seu quarto, celular em punho, vocais filtrados pelos travesseiros onde se enterra em frustração durante alguns versos - e Audiard ainda recorta seu registro tradicional do número com dois outros: as imagens do aparelho da personagem, em selfie, e uma segunda performance da mesma canção em um palco iluminado por neon, com um grupo de balé acompanhando Gomez.
O segundo grande passo arriscado do filme é revelar-se uma história de transgeneridade no meio do primeiro ato. A personagem título, interpretada pela atriz trans espanhola Karla Sofía Gascón, começa o filme como um chefão do tráfico que confessa à advogada vivida por Saldaña o seu desejo por uma operação de confirmação de gênero. O roteiro, também assinado por Audiard, se estende por anos depois desse primeiro encontro entre as duas, traçando uma jornada absolutamente inesperada, muito consciente da ambiguidade ética das suas protagonistas, mas se engajando sempre com as possibilidades abertas a elas e a complexidade do mundo em que vivem.
A performance de Gascón encarna muito da ousadia dessa abordagem moral do filme, se atirando sem medo em uma personagem trans a quem o filme permite dúvida, agressão, impulsividade, generosidade, ambiguidade, perdão. Esta última palavra, inclusive, aparece muito em Emilia Perez, o que também deve levar a questionamentos: como perdoar a violência, e a hipocrisia de quem quer remendar essa violência? Para o seu crédito, o filme de Audiard tenta se engajar com a questão de frente, sem fugir da relação conflituosa da história e da contemporaneidade do México com o narcotráfico, mas é difícil espantar a impressão que o filme está tentando abraçar um mundo, uma vida, uma humanidade que o torna difícil de manejar.
Por mais que Emilia Perez, a personagem, não tenha existido de verdade, a gana de Audiard em abarcar toda a sua vida, todo a sua jornada, muita vezes transforma o filme em uma biopic (ainda que ficcional) protocolar. Emilia Perez, o filme, sofre da mesma falta de definição dramática de um Johnny & June, ou de um Rustin - ao invés de um arco dramático, ele tem uma sucessão de acontecimentos dramáticos que não se juntam em um todo satisfatório. Eis aqui a história de uma vida, sim, mas o que ela tem como dizer, a título de narrativa? Audiard nunca realmente encontra essa resposta, o que é uma pena.
Excitante justamente por todas as audácias pelas quais provavelmente vai ser desdenhado no futuro, Emilia Perez cai vítima de uma armadilha que teria sido muito mais fácil de evitar.