Três jornalistas franceses se tornam um dos poucos estrangeiros a visitar o Camboja no final dos anos 1970, no auge do reinado de terror do Khmer Vermelho, o governo totalitário e genocida de Pol Pot. Um intrépido fotojornalista, uma repórter durona e um intelectual que cultiva laços profundos com o regime - o trio improvável vai sendo guiado pelos soldados do governo em visitas ensaiadas e aos poucos começa a cutucar perigosamente as feridas mais profundas do país. A premissa de Encontro com o Ditador, completa com o fato de ser parcialmente inspirada em um livro de não-ficção (When the War Was Over, de Elizabeth Becker, jornalista estadunidense renomada por seu trabalho no Camboja), se presta a uma receita fácil de thriller político baseado em fatos históricos, que pode ser puxada mais para a tensão do jogo de gato e rato entre jornalistas e a propaganda governamental, ou para a tragédia exploratória de um país sufocado pela ditadura.
Você provavelmente já viu algo assim, seja em Os Gritos do Silêncio (1987, também sobre o Camboja), Muito Além de Rangun (1995, ambientado em Myanmar) ou Beirute (2018, no Líbano) - mas nenhum desses tinha Rithy Panh na direção. O venerável mestre cambojano, na ativa desde o início dos anos 90 com documentários e ficções que destrincham as profundas cicatrizes que enxerga em seu país até hoje, quase meio século depois da deposição do Khmer Vermelho, pega a cartilha desse tipo de filme, tão frequentemente realizado a partir de um prisma de prestígio acadêmico ocidental, e vira de cabeça para baixo. Nas mãos dele, Encontro com o Ditador é um “docudrama” rejuvenescido pela experimentação de formatos, reenergizado pela relação franca que estabelece com a realidade, surpreendentemente coeso em uma dramaturgia que rejeita o didatismo… enfim, um filme infinitamente melhor.
Vale apontar primeiro que, aqui, Panh retorna parcialmente ao formato emblematizado pelo seu poderoso documentário A Imagem que Falta (2013), no qual encenou os horrores do Khmer através de maquetes e bonecos de madeira sofisticados, que não exatamente se mexem como em uma animação stop-motion - é mais que a câmera e a montagem ajudam a estabelecer os seus movimentos, e o fluir da história. O cineasta trabalha com um diretor de fotografia diferente aqui (sai o cambojano Prum Mesa, entra o francês Aymerick Pilarski), mas novamente se insere no processo de edição (aqui, ele assina ao lado de Mathieu Laclau) para garantir certa fluidez nessas encenações. Elas aparecem em Encontro com o Ditador sem aviso prévio, no meio das fatias live-action, e a mistura pode chocar um pouco no início - mas há uma continuidade curiosa nela, executada também por uma mixagem de som imersiva e uma trilha sonora (de Marc Marder) centrada.
Panh não se limita a essa única ousadia estrutural, no entanto. Encontro com o Ditador é um filme que não tem medo do choque, que confia no seu roteiro para envolver, provocar e comover como ficção mesmo que esteja o tempo todo nos lembrando, através de metalinguagem, que é uma ficção. Daí que surgem imagens de arquivo granuladas, entrecortadas com a fotografia cristalina de tons quentes que Pilarski aplica na encenação principal, por exemplo. Em um momento memorável, os protagonistas andam de carro e as janelas exibem uma gravação histórica em P&B, ao invés de uma renderização imersiva da cidade em que estão passeando. Em outro, Panh usa trechos de arquivo do próprio Pol Pot para inseri-lo em um diálogo climático da trama, brincando com sombras e planos-detalhe para evitar revelar o rosto do ator que está interpretando o ditador.
E, mesmo com todas essas “distrações” estilísticas, Encontro com o Ditador ainda é notavelmente poderoso como narrativa. Os três franceses no centro da trama, interpretados por Iréne Jacob, Cyril Gueï e Grégoire Colin, estabelecem entre si uma dinâmica simples, mas crível - há alguma tensão sexual entre dois deles, um conflito ideológico que vai surgindo entre dois outros, uma frustração muito palpável com as posturas distintas que eles vão tomando diante das ordens imperativas que recebem. Colin, especialmente, se mostra excelente em seu retrato do intelectual branco europeu que tensiona e quebra ao conciliar suas ideologias com a realidade. Nas mãos do ator, o personagem tem algo de muito patético, é claro, mas também algo de identificável, uma excitação retórica e um idealismo triste que explode quieta e espetacularmente na sua última conversa com o autocrata que ele admira.
Encontro com o Ditador, enfim, é de quebrar o coração - e nunca de uma forma que parece grosseira ou condescendente. Sua tragédia humana começa na indignação do estrangeiro diante da miséria do outro, e sabe perfeitamente os caminhos que precisa tomar para ir muito além disso. Estamos todos no mesmo barco, o filme parece dizer, e ele está sempre muito perto de afundar.