Pegue a encenação teatralizada num espaço fechado de Dogville, pegue também os comentários sarcásticos sobre as aspirações do musical hollywoodiano de Dançando no Escuro, mas tire dessa equação a figura de Lars von Trier e o seu cinismo. É um bom começo para entender o que o cineasta chinês Johnnie To (Eleição, Blind Detective) propõe em Escritório (Office, 2015).
A trama envolve os dias que antecedem a abertura de capital na Bolsa de uma grande companhia chinesa, a Jones & Sunn, que está fazendo negócios com uma empresa de cosméticos americana e ao mesmo tempo testando dois novos estagiários, os protagonistas da história, Lee (Wang Ziyi) e Kat (Lang Yueting). Pelos olhos deles entramos no curioso cenário do filme: um enorme galpão onde cenas são separadas com divisórias de luminárias, estruturas tubulares, vidro e aço. Com exceção de algumas árvores para demarcar o exterior da empresa (e para marcar a passagem do tempo quando a câmera passeia entre elas) há pouco no mundo de Escritório que não pareça inorgânico.
Uma vez dentro desse cenário - que vai da estação de trem a um café, um hospital, apartamentos, passando pelos vários andares do escritório - conhecemos os demais protagonistas, e seus segredos: o presidente que manteve com a CEO uma relação escondida da família, o ambicioso pupilo da CEO para quem a empresa já ficou pequena, a esforçada contadora que vê sua vida pessoal ruir em função do trabalho. No seu clímax, Escritório recorre ao episódio da falência do Lehman Brothers, estopim da crise financeira de 2008, apenas para ter um ponto de ruptura claro, porque para o espectador já é visível que a vida nesse mundo corporativo, assombrado pelo grande relógio, está longe de ser a mais saudável.
A menção aos capitalistas de Nova York também é um dos ingredientes da aproximação que Johnnie To faz aqui com a cultura americana. O grande atrativo de Escritório é ser um musical nos moldes de Hollywood, tanto tematicamente (o aprendiz que vira mestre, o espírito meio natalino de renovação de esperança) quanto formalmente (a cantoria como uma válvula de escape da realidade), mas com uma diferença fundamental: To não enxerga distinção entre o gestual do dia a dia e a coreografia supostamente alienante do musical. Para o cineasta, o vaivém do metrô, a disposição de mesas no escritório, o happy hour expansivo no bar - tudo isso é a própria coreografia.
O resultado aos poucos deixa de lembrar as trucagens de Von Trier, depois aproxima Escritório do clássico Playtime de Jacques Tati (que também tinha toda uma noção particular do que é coreografia e música), no minimalismo com que acompanhamos esse musical chinês sem dança feito com auditores e burocratas sentados atrás de mesas, e por fim se revela um puro filme de ação de To, com correria e perigo de morte, como Vingança, em que a verdade está no gesto e o potencial de agir, de se tornar uma persona de ação, é mais uma questão de memória (coletiva, no caso deste musical) e de destino do que propriamente de escolha.