É sintomático o fato de Estômago ser uma co-produção Brasil-Itália. Em seus momentos mais rasgados a comédia tem a pegada das sátiras italianas dos anos 70, e há cenas de sexo, janta e carniceria no longa de estréia do diretor curitibano Marcos Jorge que são puro Marco Ferreri.
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João Miguel interpreta Raimundo Nonato, cozinheiro que vai parar na cadeia e ali aprende que o homem que manja de fogão tem um poder todo particular. Esse talento ele conquistou aos poucos, desde que saiu da Paraíba rumo ao sul do país, primeiro em um boteco fritando coxinhas, depois nas panelas eruditas de um restaurante italiano. Ficamos sabendo no vaivém de flashbacks do filme como Nonato aprendeu a arte, mas demora a descobrirmos qual foi o crime que o botou na prisão.
Ainda que a prostituta glutona por quem Nonato se apaixona, Íria (Fabiula Nascimento), pareça saída de A Comilança (1973), João Miguel não é um parlapatão típico italiano. O tipo acanhado do ator de Cinema, Aspirina e Urubus - tipo esse que deu a João Miguel o prêmio de melhor ator por Estômago no Festival do Rio - é muito mais complexo. Com seus olhos pequenos e curiosos, o ator vai de ente benévolo de fábula a maníaco do cutelo em um segundo. Deixar-se fitar pelo estranho João Miguel é um encanto e também um perigo.
Segue valendo mais do que nunca a máxima do mais célebre pensador de gastronomia da história, Anthelme Brillat-Savarin, autor do livro A Fisiologia do Gosto, de 1825: "Diga-me o que comes e eu te direi quem és". O bandido iletrado que chama "carpaccio" de "carrapato" nunca deixará, por preconceito culinário, de ser um bandido iletrado, mas Nonato, que aprende a apreciar a boa mesa, muda como pessoa, particularmente na parte do filme-de-cadeia. E ele aprende a filtrar esse conhecimento e o transformá-lo em moeda de troca.
Talvez não seja o caso de dizer que Nonato é o clássico herói sem caráter, um correlato culinário do Selton Mello de O Cheiro do Ralo. Há em suas ações um senso de ética bastante particular, como a ética da meretriz que não beija. Aético é o chefe que vende romeu-e-julieta a oito reais... Nonato está mais para anti-herói incompreendido mesmo, como no filmes italianos setentistas que se travestiam de comédia para falar de inconformismo, e daí se explica a catarse que Estômago provoca no público.
Nem tudo é perfeito no filme, mas conseguir dialogar com o público, por vezes empolgá-lo, é um feito e tanto para o debute de Marcos Jorge. Escorado na sempre competente fotografia de Toca Seabra, o diretor exagera no didatismo por vezes (o destino de Bujíu se adivinha já na concha de feijão...), mas ao fim deixa uma boa impressão - um bom retrogosto.