Matteo Garrone construiu uma carreira em cima de perversões cuidadosas da tradição realista do cinema italiano, adicionando pitadas de espetáculo e fantasia a subgêneros como o filme de máfia (o seu Gomorra virou fenômeno cultural) e o drama social de relacionamento (Dogman), até assumir de vez o seu lado formalista em adaptações barrocas de O Conto dos Contos e Pinóquio. No contexto dessa filmografia, Eu, Capitão chega como uma tentativa de recuperação de credibilidade ao abordar um tema quente (a crise de refugiados no corredor África-Europa) com brutalidade irrepreensível de cinema verité, mas tempero de realismo fantástico.
Funcionou, como evidencia a indicação a Melhor Filme Internacional no Oscar 2024, mas a aposta de Garrone na história de imigração de dois rapazes senegaleses, que passam por bocados no caminho até o litoral da Itália, não vem sem suas complicações morais. Isso principalmente porque o cineasta, também corroteirista do projeto (ele assina o texto com três parceiros de longa data, e outros sete nomes são creditados como “roteiristas colaboradores”), escolhe focar-se inteiramente na jornada dos protagonistas, ao invés de entrar na arena suja do que pode acontecer com eles uma vez que eles chegam ao seu destino, ou uma exploração de quem ou o quê pode estar por trás das tribulações que se apresentam pelo caminho.
Eu, Capitão se torna então, essencialmente, mais uma história de coragem diante de circunstâncias impossíveis - e, como tal, ele não é desprovido de seus encantos. Para começar, os protagonistas Seydou Sarr e Mustapha Fall brilham com a expressividade transparente que é típica dos atores de primeira viagem, arrastando até o espectador mais cínico para o coração da jornada dos personagens. Enquanto isso, o diretor de fotografia Paolo Carnera (que já havia feito um grande trabalho em O Tigre Branco) cria imagens inesperadas diante da paisagem desértica que os protagonistas encaram durante a maior parte da trama. Seja ao filmar um barco apinhado de refugiados saindo do breu no clímax do filme ou fazer um registro cru da prisão clandestina onde Seydou é mantido durante o miolo da trama, Carnera demonstra olho afiado para elementos de cena e o poder que eles têm de transmitir sensações.
Já o trabalho de Garrone brilha onde já era evidente que ia brilhar: na forma como entrelaça os elementos mitológicos e vôos de fantasia dos protagonistas à jornada obviamente bem pesquisada e fundamentada em realidade que compõe a base do roteiro. Eu, Capitão tende a observar o irreal com menos maravilhamento e mais lirismo, marcando essa transição entre o verdadeiro e o “falso” com toques estilísticos sutis (um aumento na trilha sonora aqui, um movimento de câmera cuidadoso ali) que funcionam para convencer de que esta é uma história contada no território difícil da integração entre o imaginário e o concreto onde vive, afinal, a essência da humanidade. Garrone não dispensa o choque do voo de uma imigrante à beira da morte no meio do deserto, mas ainda faz um ator vestido de espírito mensageiro entrar em cena a pé, desviando de prisioneiros sentados pelo caminho.
Como produto de cinema, portanto, há pouco do que se reclamar quando se trata de Eu, Capitão. Como adição ao contínuo narrativo da sociedade é que fica difícil defendê-lo, especialmente quando escolhe a singularidade da experiência subjetiva dos seus protagonistas para fugir das implicações éticas da sua proposta. Por toda a sua pontificação sobre coragem, resiliência e esperança diante do caos, Eu, Capitão é essencialmente covarde, e talvez até um pouco cínico, na forma como se distancia sistematicamente de qualquer questão que foge do domínio fácil da tragédia que é “estetizável” por não ser culpa de ninguém - ao menos, não na visão imediata que o filme toma.
Por outro lado, deve ter sido justamente por isso que o filme se mostrou tão palatável para os votantes do Oscar, historicamente interessados em obras “importantes” sobre a miséria dos outros desde que elas não revelem o papel desempenhado por seus compatriotas do “mundo desenvolvido” na criação e manutenção dessa miséria. Garrone parece, enfim, ter escolhido prestígio em troca de audácia - e cada um faz as pazes com as trocas que elege para si, não é mesmo?