Fale Comigo começa com um garoto deixando uma festa quase inconsciente enquanto todos os presentes, ao invés de ajudar, formam uma horda de celulares para filmar. Essa relação anestesiada com a realidade é a base do filme, em que um grupo de jovens pratica rituais macabros de receber e incorporar espíritos absolutamente sem cerimônia, como uma prática estimulante e entorpecente. A brincadeira envolve um público espectador, e a tradição é filmar o rito e publicar nas redes. Tudo isso poderia soar como um episódio ruim de Black Mirror sobre nossa relação com a tecnologia e o entretenimento. Mas a dupla de diretores Michael e Danny Philippou tem muito respeito pelos seus protagonistas - e pela história que contam - para deixá-los cair na crítica clichê.
Irmãos gêmeos australianos saídos de um canal de YouTube de público jovem, os Philippou sabem muito bem de quem e com quem estão falando, e criam conexões com as figuras que colocam na tela porque focam em suas dores. Veja, não é que o desprezo do grupo pelo absurdo do que se passa em cada ritual não seja algo de levantar sobrancelhas. Mas é admirável o retrato gentil que Fale Comigo faz de seus carismáticos e irresponsáveis personagens. Eles não são descartáveis, ridículos ou despropositados, como bem poderiam ser no gênero do terror. Fale Comigo não quer eliminá-los - ele quer entendê-los.
Liderando essa jornada surpreendentemente emocional está Mia, assombrada pela morte recente da mãe e pela falta de diálogo com seu pai. Ela definitivamente não é a garota mais popular da escola e procura conforto na família de uma melhor amiga que parece até incomodada com sua presença. Enquanto busca conexão com a família de Jade - em seu irmão mais novo Riley e sua mãe, Sue -, Mia só encontra um vínculo real com a mão sinistra que protagoniza o ritual, acionada pelas simbólicas palavras “fale comigo”.
Claro que a iniciação leva Mia a uma derrocada emocional difícil de ver, impulsionada por um ritual perturbador que dá errado demais e impacta de modo permanente não só ela, como Jade, Riley, Sue e por aí vai. Tateando um novo universo marcado pelo lento ressurgimento da figura de sua mãe, Mia sai do lugar de jovem incompreendida para uma jornada de desconexão e perda - e Fale Comigo constrói uma inversão de seus personagens de forma orgânica, fazendo de nós testemunhas empáticas de tudo de errado que se passa na tela.
O que antes parecia só um terror adolescente ancorado no trauma agora carrega muito mais peso, violência e sangue do que o começo estipulava. À medida que vamos adentrando esse universo e aceitando as regras do ritual, Fale Comigo também vai se desvendando como um terror cheio de interpretações, que permite diferentes teorias. No retrato da experiência coletiva ritualística, também chama atenção a necessidade de compartilhamento, um que distrai todos os nossos personagens do potencial real de conexão oferecido pela cerimônia.
Tudo isso soa dramático, mas é muito mais o resultado final de Fale Comigo que deixa este gosto, porque o desenvolvimento do terror dos Philippou é envolvente, divertido e bizarramente intenso. É o tipo de terror que te deixa na beira da poltrona, roendo as unhas e torcendo por Mia, mesmo que ela tome diversas decisões erradas. O sentimento é familiar no terror, claro, mas Fale Comigo aciona isso através da empatia e da compreensão, e não só do carisma: Mia toma decisões ruins, mas nunca burras - e por isso estar ao seu lado é uma decisão difícil, mas inevitável.
Enquanto a direção dos Philippou não está realmente interessada em chamar atenção para a estilização, a dupla sabe deixar sua marca aqui e ali, em tomadas que instigam pela quebra de expectativa, e no uso de uma trilha sonora e um design de som que compõe muito bem o resultado geral de Fale Comigo. Mais do que isso, não é exagero dizer que os irmãos criam um terror imediatamente icônico, com uma mão tenebrosa difícil de esquecer e um visual marcante para cada um dos espíritos que surgem em tela. Nessa obra completinha, para além da narrativa construída, é preciso ressaltar também a atuação de Sophie Wilde, que sabe se divertir nos momentos de possessão ao mesmo tempo que dá peso e ritmo à decadência de Mia.
É difícil escapar da expectativa de Fale Comigo. Não bastasse a circulação de avaliações estrangeiras elogiosas muito antes da estreia por aqui, o hype vai crescendo conforme chegam notícias de prelúdios planejados e sequências já confirmadas. Por mais que isso crie uma promessa grande demais para carregar, é até bizarro que Fale Comigo seja surpreendente mesmo assim. Mas esse novo terror já é tão original quanto clássico, diferente e divertido de assistir.