Cena de Ficção Americana (Reprodução)

Filmes

Crítica

Ficção Americana é meta-narrativa arrebatadora de artista em conflito com a arte

Inflexível em sua sutileza, filme dá ao grande Jeffrey Wright uma rara chance de brilhar

01.03.2024, às 15H28.

Dizia o mestre Eduardo Coutinho que “bom é o filme que faz perguntas; o que tem respostas, você joga no lixo”. Por esse lado, o saudoso cineasta brasileiro provavelmente teria adorado Ficção Americana, que concorre a cinco estatuetas do Oscar 2024 - ele é um filme feito todo de perguntas. Estreando no cinema após muito sucesso em séries de TV como Master of None, The Good Place e Watchmen, o diretor e roteirista Cord Jefferson despeja no texto de Ficção Americana um impulso narrativo que quase se aproxima do fluxo de consciência. A impressão é que estamos assistindo, em tempo real, ao debate de um artista consigo mesmo sobre os conceitos de arte, cultura, serviço e empatia que ele carrega e em torno dos quais construiu sua vida.

E que experiência arrebatadora esse debate pode ser, se você se deixa enredar nele. Ficção Americana é a história de Thelonious Ellison (Jeffrey Wright) - para os íntimos, Monk -, um escritor de livros eruditos de sucesso moderado, que se vê em uma situação financeira complicada quando a mãe, Agnes (Leslie Uggams), adoece. Desencantado com o mundo literário, e especialmente com a hipocrisia das editoras que priorizam narrativas de sofrimento negro para apaziguar a culpa das elites brancas que compram seus livros, ele resolve (meio que de brincadeira) assumir um pseudônimo e escrever uma história que satiriza pelo exagero todos os clichês desses livros “sobre a realidade do gueto” que voam das prateleiras. O resultado, claro, é que sua obra irônica é recebida sem nenhuma ironia pelo mercado, e faz um baita sucesso.

Este é o gatilho que Jefferson usa para fazer Monk, claramente um avatar do próprio autor, reavaliar seu lugar no contínuo cultural da humanidade, suas relações com família, amigos e pretendentes, e muito mais. E, embora haja esse toque de autobiografia no debate obviamente pessoal que o filme promove, Ficção Americana não se rende ao hermetismo de um filme-discurso. Para começar, Monk não é como um protagonista de Woody Allen ou Aaron Sorkin, explanando em cenas verborrágicas suas neuroses e ditames sociopolíticos - seguindo o caminho contrário, Jefferson faz dele um homem introspectivo, de fala mansa, até emocionalmente indisponível. Um homem, enfim, que precisa aprender (como o seu próprio irmão, interpretado por Sterling K. Brown, avisa em uma cena do terceiro ato) que as pessoas querem amá-lo por completo”.

Ficção Americana vive e morre por esse arco emocional claro que desenha para Monk, se apoiando muito nele para transformar as questões que disparam de um lado para o outro na cabeça e no texto de Jefferson em uma história de verdade. O protagonista Jeffrey Wright é peça-chave nesse sentido, é claro, e o trabalho que ele faz aqui é um ato de equilibrismo absurdo entre a adesão de códigos familiares ao arquétipo e a inclusão de detalhes únicos ao personagem. Sim, as sobrancelhas perenemente franzidas do intelectual misantropo estão aqui, assim como a inadequação física do homem-bebê que ainda se agarra à saia da mãe e parece perplexo com o interesse amoroso demonstrado pela vizinha, Coraline (Erika Alexander). Ele é sexy como um cachorro de três pernas, concorda a própria pretendente.

Mas há algo de caloroso que Wright deixa desprender de seus olhos, seus gestos, sua disposição de rir de si mesmo… algo de eminentemente crível em como essa humanidade pulsante se entrelaça com a soberba intelectual que ele aprende a deixar para trás, o cinismo que ele descobre ser difícil de aplicar uma vez que os alvos desse cinismo se tornam de carne e osso na sua frente. E qual foi a última vez que um protagonista de Allen ou Sorkin aprendeu alguma coisa? Nos olhares ressabiados, posturas tensas, rompantes ressentidos de Monk, Wright revive a arte da construção do verdadeiro anti-herói - um cara bacana, que não quer machucar ninguém, mas que nem sempre consegue superar os próprios entraves psicológicos a tempo de se impedir de fazer isso.

Ademais, se Ficção Americana carrega as marcas do passado televisivo do seu criador, talvez não seja por acaso. Reza a cartilha da crítica cultural que a TV é a mídia do roteirista, enquanto o cinema é a mídia do diretor - uma generalização cada vez mais simplória diante da ascensão de tantos diretores-autores na televisão, mas é verdade que Jefferson dá preferência ao texto sobre a estética da encenação. A fotografia de Christina Dunlap (Cha Cha Real Smooth) registra com serenidade os cenários à beira-mar e as salas confortáveis de classe média-alta na qual os personagens transitam, enquanto o pianinho delicioso da trilha assinada por Laura Karpman (As Marvels) dá aos procedimentos o ritmo que talvez falte um pouco nos diálogos pé-no-chão escritos por Jefferson.

De certa forma, tudo isso faz parte do engodo de Ficção Americana, que se infiltra na tradição do slice-of-life (termo em inglês para dramas que buscam uma aproximação da realidade ao rejeitar mecânicas de trama artificiais) metalinguístico que construiu a carreira de tantos nomes cultuados do panteão hollywoodiano para nos apresentar questões muito mais desafiadoras. Em que lugar o mercado coloca o artista, e especialmente o artista negro? Como ele pode negociar esse lugar com as histórias que quer contar, e os chavões que é obrigado - ou se sente impulsionado - a seguir? O que exigimos das histórias que ele conta, o que essas exigências falam das nossas miopias, preconceitos e angústias pessoais? Como as miopias, preconceitos e angústias do artista se relacionam com a concessão ou resistência a essas exigências?

Ficção Americana não tem nenhuma resposta. Ainda bem.

Nota do Crítico
Excelente!