Cena de Flee: Nenhum Lugar Para Chamar de Lar (Reprodução)

Filmes

Crítica

Flee potencializa uma já tocante história real com lances de pura poesia visual

Jonas Poher Rasmussen faz muito mais do que ouvir o relato do seu biografado

20.04.2022, às 06H00.

Uma das imagens recorrentes mais simples de Flee: Nenhum Lugar para Chamar de Lar é também uma de suas mais eficientes: um avião riscando o céu azul. Durante a modesta 1h29 do filme de Jonas Poher Rasmussen, o protagonista Amin cruza com essa imagem em diferentes contextos, começando com a profissão de seu pai desaparecido, supostamente um piloto, e evoluindo até as muitas viagens que ele faz durante sua vida de refugiado e de estudante. Mas, mesmo nesse cenário biográfico em constante mutação, o avião riscando o céu azul sempre significa a mesma coisa em Flee: uma rota de escape, uma forma de não encarar o que aguarda em terra se ficarmos parados em um só lugar.

O filme dinamarquês chega aos cinemas brasileiros após uma trajetória notável pela temporada de premiações, incluindo uma inédita indicação tripla ao Oscar 2022 (melhor documentário, melhor animação, melhor filme internacional). Nenhum longa-metragem foi reconhecido simultaneamente nas três categorias antes. É claro que, se fosse menos teimosa, a Academia teria sido capaz de reconhecer que Flee transcende todas essas categorizações e é simplesmente um dos maiores feitos de cinema do ano passado.

Dividindo crédito de roteiro com o seu biografado, o diretor Rasmussen costura entrevistas que realizou com Amin, um amigo de longa data, com reconstruções das histórias que ele conta sobre sua infância e adolescência. Nascido no Afeganistão, ele e sua família foram deslocados pelo conflito entre forças políticas apoiadas pelos EUA e pela Rússia nos anos 1980, no auge da Guerra Fria, embarcando assim em uma jornada de mais de uma década em busca de estabilidade, segurança e paz - enfim, de um lar.

O filme todo é renderizado em um traço de animação 2D limpo, mas expressivo, o que permite não só que Rasmussen proteja melhor a anonimidade dos envolvidos, como também que ele recrie de forma mais vibrante a nostalgia tingida de remorso e trauma que caracteriza as lembranças de Amin. Por vezes, e especialmente no começo, Flee não é um filme tão diferente do recente Apollo 10 e Meio, de Richard Linklater: uma recriação caleidoscópica das memórias difusas de uma infância, apoiadas principalmente em marcadores culturais comuns (seja “Take on Me”, do a-ha, ou O Grande Dragão Branco, estrelado por Van Damme).

Quando o conto de amadurecimento de Amin se torna mais duro, mais sombrio, Flee recorre a um traço minimalista, quase fantasmagórico, que evoca as fronteiras indefinidas e os bloqueios psicológicos do trauma. Rasmussen ainda se inclui no filme, encenando as conversas com Amin de maneira franca - enquanto ouvimos as gravações das entrevistas, vemos os dois amigos “em cena” (em seus formatos animados), a troca de brincadeiras entre eles, a forma como o puro ato de contar sua história para alguém em quem confia se converte em terapia para o entrevistado, em forma de entender sua própria vida e seguir em frente, de alguma forma.

É com essas pequenas decisões cruciais, seja no âmbito narrativo ou no visual, que Flee faz nascer, de uma história real importante e comovente, o senso de intimidade e de poesia que impregna o produto final. Há uma leveza e um respeito tranquilo no filme quando ele aborda a homossexualidade de Amin, por exemplo, e como ele a descobriu e a explorou diante das adversidades que enfrentou na juventude. Assim como há um senso agudo da crueldade política e da desigualdade econômica envolvida nos imbróglios internacionais que provocaram a tragédia da família do protagonista.

Conforme caminha para a vida adulta de Amin, Flee se revela como a história de um homem que precisou fugir e sobreviver, lutando para entender que não precisa mais. Na maturidade e no confronto sóbrio que Amin faz dessa dificuldade, desse mecanismo de defesa causado pelo trauma que afeta seus relacionamentos até hoje, o filme encontra o fio comum para ligá-lo ao espectador. Todo mundo precisa pousar aquele avião em algum momento, por mais tentador que seja vê-lo riscando o céu azul mais uma vez.

Nota do Crítico
Excelente!