Mimi Cave é uma diretora que não teme correr riscos - ou pelo menos é isso que o seu longa de estreia, Fresh, anuncia. Em uma cena, por exemplo, o vilão do filme, Steve, dança pela própria cozinha ao som de “Obsession”, clássico new wave do grupo Animotion, enquanto o ator Sebastian Stan abusa de movimentos caricatos na preparação de um prato especial (sem spoilers!) e a fotografia de Pawel Pogorzelski se demora nos instrumentos e ingredientes que ele usa no processo.
É um dos vários momentos em Fresh, lançado hoje (4) no Brasil pelo Star+, que abusam do teatral e do kitsch para sublinhar o absurdo de sua premissa. Cave se mostra brilhante em reger diferentes trabalhos técnicos para criar um thriller genuinamente enervante: basta notar como ela trabalha com o editor Martin Pensa para traçar paralelos entre as vertentes da trama, seja em cortes secos que sincronizam os suspiros de dois personagens em lados opostos da história ou em belos fade-ins que misturam os cenários suburbanos, teoricamente seguros, e os remotos, intrinsecamente suspeitos.
É uma pena que o roteiro de Lauryn Kahn (Ibiza: Tudo Pelo DJ) não se mostre totalmente à altura dessa virtuosidade. Em Fresh, acompanhamos Noa (Daisy Edgar-Jones), jovem desiludida com os encontros virtuais que certo dia no supermercado conhece Steve e topa sair com ele. Cirurgião plástico, Steve é carinhoso e divertido, e logo Noa aceita ir em uma viagem de fim de semana com ele - e é aqui que as coisas começam a dar errado, como você pode imaginar.
Kahn, veterana da comédia, naturalmente tem um ouvido bom para os detalhes que fazem um diálogo fluir em tela. Ao mesmo tempo, ela sabe que está escrevendo em um gênero diferente, e é capaz de inscrever o seu humor nas entrelinhas de uma história de horror. Os momentos mais saborosos (perdoem o trocadilho) de Fresh acontecem exatamente nessas entrelinhas, nas quais Kahn revela com precisão os discursos comuns do abuso e zomba deles inclementemente.
Acontece, por exemplo, quando Steve diz a Noa que “sabia que ela era especial”, ou que era “toda f*dida da cabeça”, exatamente como ele. Equalizar-se à vítima dessa forma é um mecanismo comum e insidioso de abusadores que nem sempre vai parar nos retratos ficcionais do abuso, porque é espinhoso demais em sua aparente ambiguidade, ou escondido demais em sua sutileza. Fresh mostra coragem ao abordá-lo e inteligência ao encená-lo tão afiadamente que o que poderia ser drama se transforma em sátira.
É no quadro maior, mesmo, que o script perde o brilho. Em termos de estrutura, Fresh deixa múltiplas subtramas interessantes órfãs de uma conclusão potente ao apressar um clímax centrado inteiramente na tomada de poder da protagonista. Este poderia ser um filme que sublinha a necessidade da conexão humana, por exemplo, mas prefere sacrificar as linhas narrativas que fariam esse ponto para reforçar um discurso cínico que não precisava de reforço, porque já havia sido ricamente abordado na linha principal. O filme parece incapaz de ver além desse (merecido) cinismo, e incapaz de mergulhar mais profundamente no que o causa.
Como resultado, por mais que tenha as melhores intenções, todos os pontos de vista corretos, e um par de atuações principais diametralmente opostas, mas igualmente eficientes, Fresh não consegue escapar de soar vazio em seu discurso. Não que ele seja uma voz criativa importante aqui, mas é curioso notar que Adam McKay é um dos produtores do longa. Assim como o recente Não Olhe Para Cima de McKay, Fresh parece ter sido feito com a intenção de dizer o óbvio mais uma vez, na esperança de que alguém que ainda não o escutou, escute.
Pode ser uma missão valorosa, como serviço público, mas não é necessariamente bom entretenimento.