Como um bom autor em condições de desfrutar do seu status, Guel Arraes está voltando ao cinema com dois longas-metragens de uma vez, um binômio à moda Spielberg: um de perfil mais difícil e rebuscado, outro com forte apelo popular. Este último é evidentemente a continuação de O Auto da Compadecida (2000), que sai no Natal. O primeiro é Grande Sertão, nova adaptação às telas do marco da literatura modernista brasileira escrito por Guimarães Rosa e publicado originalmente em 1956.
Provavelmente Arraes não enxerga o seu Grande Sertão como um filme difícil, e de fato o longa parece projetado para pleitear a vaga, jamais reocupada, que Cidade de Deus (2002) e Tropa de Elite (2007) deixaram no imaginário desta geração em matéria de epopeias urbanas. Ano passado, Cangaço Novo se candidatou a esse lugar pop das narrativas criminais de carga social, mas o universo sertanejo parece um mundo à parte. O sertanejo - que é a especialidade de Arraes - está ademais sendo ressignificado neste Grande Sertão, cuja história agora se passa numa favela distópica (não seriam todas?) isolada num grande centro urbano não nomeado.
Tirar Guimarães Rosa do interior de Minas Gerais e Bahia e transportá-lo para o “filme-de-favela” é o movimento mais ambicioso de Arraes nesse projeto que envolve, simultaneamente, um reposicionamento do roteirista e diretor em torno dos seus temas de predileção. O filme está tratando de uma certa cultura oral urbana (a prosódia de Rosa que conecta com o duelo de repente que conecta com o rap) em busca de entender como se apropriar desse idioma - ou seja, em busca de entender como se popularizar num Brasil de divisões. Nesse sentido, a história toda de Riobaldo e Diadorim, do amor mal resolvido à guerra de gangues, se transportaria organicamente à urbanidade porque assim permite o dinamismo da fala.
Não é muito diferente do que Arraes fez ao longo da sua carreira quando trocou a televisão pelo cinema, não apenas nos longas que dirigiu mas também naqueles que apenas roteirizou, a exemplo de O Coronel e o Lobisomem (2005). O selo literário é a marca evidente (adaptações de Suassuna, Osman Lins, Dias Gomes) dessa busca por autoridade no popular, mas para ela se expressar plenamente nesses filmes sempre foi necessário procurar também a autoridade da fala, de uma emulação de prosódia que ultrapassasse o “sotaque Globo” e soasse viva, autônoma e verdadeira.
Grande Sertão é o passo mais largo que Arraes dá nesse sentido e isso se torna rapidamente a questão nevrálgica do filme. Se havia uma familiaridade na forma com que a premissa se organiza (Riobaldo faz o mesmo perfil de observador e mediador que Buscapé fazia em Cidade de Deus; o coronel Zé Bebelo, transformado em chefe de polícia, toma o filme para si como um convite à ambiguidade de Tropa de Elite) ela se dilui numa adaptação literal e teatralizada. O longa nunca deixa de almejar o popular - incorporar o funk à trama é tão certeiro que parece até inevitável; é o funk hoje a nossa real língua franca - mas quer fazê-lo nos seus termos, que envolvem uma certa negação do naturalismo.
O efeito principal dessa preocupação com o texto é que toda a responsabilidade de carregar o filme recai sobre as performances. Atores com prática no teatro se saem melhores que aqueles formados na teledramaturgia porque Grande Sertão lhes exige um alcance e um registro à moda Zé Celso. Luis Miranda não se intimida diante dos grandes atores que o precederam (Jofre Soares no filme de 1965, José Dumont na minissérie de 1985) e faz do seu Zé Bebelo a cola que mantém unido um filme sem ritmo de uma cena à próxima. Pode haver um ritmo na musicalidade dos diálogos (Miranda e Caio Blat dominam o texto e sobressaem) mas isso não se traduz num ritmo na encenação necessariamente.
As carências de Guel Arraes como encenador vêm à tona quando o filme mais precisa de um olho “de cinema” que acomode o textual - especialmente se todo o projeto do diretor recifense é encontrar uma expressão que ultrapasse o televisivo. Arraes está lidando aqui com signos da urbanidade e da distopia que atualizam o Brasil do modernismo, e alguns deles despontam no filme com desejo de autonomia e contundência, do design das gangues à la Mad Max, passando pela iluminação barroca, até o inevitável retrato da tropa como um corpo fascistoide. Todos esses gestos, porém, não são suficientes para que Grande Sertão consiga manifestar plenamente e então transcender o que neles há de literal.
Debruçar-se sobre a oralidade para encapsular uma verdade de Brasil não é exclusividade dos filmes de Arraes. De fato, dois dos principais cineastas em atividade hoje no país, Affonso Uchôa e Adirley Queirós, que inclusive conseguem viabilizar os seus longas de forma tão prolífica quanto o recifense, estão fazendo os seus trabalhos mais interessantes nessa procura de cinema falado. Comparar Grande Sertão com Arábia (2017) ou principalmente com Mato Seco em Chamas (2022) dá uma boa medida do que diferencia esses filmes, mas também uma boa medida da busca que os une.