Numa época em que o cinema de Wes Anderson parece refém de sua popularidade, com sua estética reproduzida em memes e em IA nas redes, vem a calhar esse lote de quatro curtas-metragens que adaptam a obra de Roald Dahl (1916-1990). São filmes que nos lembram, por uma questão de contraste, que julgar o cinema de Anderson como estéril, pueril ou inofensivo seria antes de tudo subestimar seu propósito.
“A Incrível História de Henry Sugar”, “O Cisne”, “O Caçador de Ratos” e “Veneno” mostram uma faceta soturna de Dahl que não é inesperada para quem já reparava nas tendências corrosivas do autor de A Fantástica Fábrica de Chocolate. São histórias que tratam, por meio da fabulação e das suas licenças de fantasia (como o antropomorfismo), de caricaturizar a Inglaterra e os ingleses. Escritos entre os anos 1940 e 1970, nas décadas em que o mundo assistiu às independências das ex-colônias britânicas, como a Índia, esses contos se prestam a analisar a herança amarga do imperialismo e seu efeito sobre o espírito inglês.
É um Anderson político que se encena nesses curtas, portanto, e o fato de eleger um autor de livros infantis como fonte já bastaria, por si só, para chamar a nossa atenção para o contraste. Anderson já havia adaptado Dahl em O Fantástico Senhor Raposo (2009) mas foi a partir de O Grande Hotel Budapeste em 2014 que o seu cinema pareceu se engajar mais no comentário de consciência política. A adaptação dos quatro contos agora promove uma interseccão mais evidente entre o lúdico e o dialético.
“Veneno” e “Henry Sugar” são as histórias que abordam frontalmente a herança colonialista, e é com uma espantosa naturalidade que estreiam na vasta trupe de Anderson dois nomes de linhagem indiana, os atores Dev Patel e Ben Kingsley. O primeiro impõe uma cadência vertiginosa à prosódia desses curtas, que conservam no texto a qualidade literária do material de origem. Já Ben Kingsley - cujo domínio da pantomima não é suficientemente reconhecido pelas pessoas - carrega nos olhares a melancolia e uma certa autoconsciência irônica de si, dois elementos que são chave para o que Anderson está propondo nesses curtas.
“O Caçador de Ratos” e “O Cisne”, por sua vez, fazem escolhas inconfundíveis pela morbidez como uma forma de tipificar uma certa fleuma inglesa não apenas como uma curiosa peculiaridade cultural, mas como sintoma de um mal-estar anterior. Reunidos, esses quatro curtas têm uma unidade formal que primeiro fica evidente pela escalação de elenco (o fato de os atores viverem dois ou três personagens cada atesta que este projeto de Anderson tem algo de discursivo, para além do estético) e depois se desvela num estado de espírito, num pesar.
Como as histórias são enxutas, com 17 minutos cada na sua maioria, Anderson não tem muito como sobrepor camadas narrativas ao seu jogo teatral de metalinguagem. Isso faz desses curtas uma experiência autocontida e, como tal, fica mais clara a função do jogo. O que se vê são variações de restrição; em “Veneno”, há a imobilidade de Benedict Cumberbatch; em “O Cisne”, há o monólogo de Rupert Friend e o estreitamento do espaço; em “O Caçador de Ratos”, a mímica de Ralph Fiennes.
Quem julga Wes Anderson um cineasta do excesso talvez se surpreenda ao ver que esses curtas, ao se desafiar em graus distintos de restrição, estão na verdade em busca de um essencialismo que se recusa a estar todo facilitado e entregue na imagem. Há muito espaço para a imaginação, seja quando os curtas operam como narrativa oral teatralizada (a quebra da quarta parede então vem não como uma forma de cinismo mas para instigar uma fabulação nossa), seja quando o próprio espaço filmado se reduz (o olhar limitado do binóculo, a redução das luzes, a ação “de coxia” de tudo o que rola no extracampo).
Nisso também há um fundo político: a ideia aqui é que há coisas pavorosas demais para serem mostradas de frente, ou sem um véu de inocência, seja desde a morte de um menino até as brutalidades da apropriação cultural. Ao mesmo tempo, o relato oral não tira a gravidade do que é narrado, pelo contrário, porque o pavor pode se amplificar quando permanece no plano do imaginário. Para quem conviveu com a violência do colonialismo, e convive com sua memória, basta imaginar para ver.