Zar Amir Ebrahimi em cena de Holy Spider (Reprodução)

Filmes

Crítica

Fascinado por um psicopata grotesco, Holy Spider perde de vista sua heroína

Ali Abbasi esbarra desconfortavelmente no voyeurismo ao filmar a violência misógina

20.01.2023, às 16H43.
Atualizada em 20.01.2023, ÀS 16H59

O cineasta irano-dinamarquês Ali Abbasi construiu uma carreira instigante em cima de histórias fantasiosas sobre o grotesco da experiência humana. A sua predileção pelo horror corporal se presta bem para frisar o status forasteiro dos personagens que ele escolhe acompanhar, se entrelaçando com os discursos cuidadosamente considerados sobre separação de classes que ele colocou nas entrelinhas de seu thriller maternal Shelley (2016) e de seu conto de fadas sombrio Border (2018). Em Holy Spider, no entanto, a sensibilidade sombria e incômoda de Abbasi se encontra com algo que nunca precisou encarar antes: a realidade.

Aqui, acompanhamos Saeed Hanaei (Mehdi Bajestani), um veterano de guerra iraniano que toma para si a missão de “limpar” as ruas da cidade sagrada de Mashhad, escolhendo aleatoriamente prostitutas para assassinar. O caso do serial killer, que ficou conhecido como “Spider” (Aranha) na imprensa iraniana e matou quase 20 mulheres entre 2000 e 2001, é real - ao contrário da segunda protagonista do filme, a jornalista fictícia Arezoo Rahimi (Zar Amir Ebrahimi), que precisa enfrentar o descaso das autoridades e a misoginia da sociedade iraniana para investigar os assassinatos.

Criada por Abbasi e o corroteirista Afshin Kamran Bahrami, Rahimi tem todos os marcadores de uma heroína de suspense instantaneamente icônica. Os cabelos curtos escondidos pelo hijab apenas quando em público, a assertividade nervosa que ela precisa afetar quando confrontada com as restrições misóginas do dia a dia do país, a insistência metódica de sua investigação, o olhar existencialmente cansado que ela dispensa às consequências mais aterrorizantes da cultura que tenta enfrentar… a personagem não deixa muito a dever para uma Lisbeth Salander (da saga Millennium) ou uma Stella Gibson (da série The Fall).

O problema é que Holy Spider parece terrivelmente desinteressado nela - ou, ao menos, em qualquer dimensão dela que não seja o perigo sistêmico que ela corre ao tentar fazer o seu trabalho. Abbasi acha espaço em seu filme para múltiplas cenas desconectadas do plot principal em que sua heroína passa por apuros e assédios, e expressa uma vontade (justa, diga-se) de expor as formas como o seu triunfo sobre as dificuldades nunca será completo dentro do sistema em que ela vive. Não há tempo nas 1h56 do filme, no entanto, para que entendamos quem Rahimi é além de sua investigação, quais são os anseios, sonhos e desejos que ela vê reprimidos ou entortados pela sociedade machista.

Holy Spider nos diz que devemos torcer e nos revoltar por ela, mas não entendê-la. O privilégio da compreensão, ao contrário, é o que Abbasi e cia. mais estendem a Saeed Hanaei e sua mortífera cruzada pseudo-religiosa. O longa dedica extensas sequências de diálogo ao histórico do serial killer, destrinchando a desonra bélica, a insatisfação familiar e os impulsos fanáticos que motivaram tanto os assassinatos quanto o longo período que ele passou impune ou, mesmo quando preso, resolutamente impenitente. Ademais, entrega ao exemplarmente dedicado Mehdi Bajestani dúzias de longos takes silenciosos em que pode construir a linguagem corporal do vilão e expressar os caminhos lógicos tortuosos pelos quais seu personagem justifica seus atos.

De certa forma, no entanto, não é surpresa que Holy Spider se fascine tanto por Hanaei. É o ponto de vista dele que permite a Abbasi repetir aqui a elaboração do grotesco que fez em seus filmes anteriores, retratando o seu psicopata em estados de delírio, paranoia ou êxtase que transcendem com precisão quase cirúrgica a nossa concepção visual e situacional de normalidade. São sequências bem construídas e executadas no sentido que pretendem desorientar, enojar, perturbar… e conseguem. Mas é difícil escapar da sensação de que a violência intransigente do filme está servindo mais a Abbasi como esteticista provocador do que à história que ele precisa contar.

Em entrevistas, o cineasta declarou que Holy Spider não é “um filme de serial killer, mas um filme sobre uma sociedade serial killer”, e ainda frisou que não queria fazer outra obra sobre as diferentes formas nas quais um homem pode matar e mutilar uma mulher”. Faltou só considerar se, na busca do seu primeiro objetivo, ele não estava impossibilitando o segundo, especialmente dentro da visão muito particular que aplica às suas obras. Faltou a humildade de reconsiderar a própria abordagem, ou, alternativamente, a sabedoria de seu envolvimento no projeto.

É injusto, claro, pedir a um artista que abandone suas sensibilidades, mas é importante apontar quando elas - como em Holy Spider - se revelam desastrosamente equivocadas ao ponto de transformar atos de violência misógina em um produto quase voyeurísticode elaboração de gênero e realização estética.

Nota do Crítico
Ruim