O cineasta irano-dinamarquês Ali Abbasi construiu uma carreira instigante em cima de histórias fantasiosas sobre o grotesco da experiência humana. A sua predileção pelo horror corporal se presta bem para frisar o status forasteiro dos personagens que ele escolhe acompanhar, se entrelaçando com os discursos cuidadosamente considerados sobre separação de classes que ele colocou nas entrelinhas de seu thriller maternal Shelley (2016) e de seu conto de fadas sombrio Border (2018). Em Holy Spider, no entanto, a sensibilidade sombria e incômoda de Abbasi se encontra com algo que nunca precisou encarar antes: a realidade.
Aqui, acompanhamos Saeed Hanaei (Mehdi Bajestani), um veterano de guerra iraniano que toma para si a missão de “limpar” as ruas da cidade sagrada de Mashhad, escolhendo aleatoriamente prostitutas para assassinar. O caso do serial killer, que ficou conhecido como “Spider” (Aranha) na imprensa iraniana e matou quase 20 mulheres entre 2000 e 2001, é real - ao contrário da segunda protagonista do filme, a jornalista fictícia Arezoo Rahimi (Zar Amir Ebrahimi), que precisa enfrentar o descaso das autoridades e a misoginia da sociedade iraniana para investigar os assassinatos.
Criada por Abbasi e o corroteirista Afshin Kamran Bahrami, Rahimi tem todos os marcadores de uma heroína de suspense instantaneamente icônica. Os cabelos curtos escondidos pelo hijab apenas quando em público, a assertividade nervosa que ela precisa afetar quando confrontada com as restrições misóginas do dia a dia do país, a insistência metódica de sua investigação, o olhar existencialmente cansado que ela dispensa às consequências mais aterrorizantes da cultura que tenta enfrentar… a personagem não deixa muito a dever para uma Lisbeth Salander (da saga Millennium) ou uma Stella Gibson (da série The Fall).
O problema é que Holy Spider parece terrivelmente desinteressado nela - ou, ao menos, em qualquer dimensão dela que não seja o perigo sistêmico que ela corre ao tentar fazer o seu trabalho. Abbasi acha espaço em seu filme para múltiplas cenas desconectadas do plot principal em que sua heroína passa por apuros e assédios, e expressa uma vontade (justa, diga-se) de expor as formas como o seu triunfo sobre as dificuldades nunca será completo dentro do sistema em que ela vive. Não há tempo nas 1h56 do filme, no entanto, para que entendamos quem Rahimi é além de sua investigação, quais são os anseios, sonhos e desejos que ela vê reprimidos ou entortados pela sociedade machista.
Holy Spider nos diz que devemos torcer e nos revoltar por ela, mas não entendê-la. O privilégio da compreensão, ao contrário, é o que Abbasi e cia. mais estendem a Saeed Hanaei e sua mortífera cruzada pseudo-religiosa. O longa dedica extensas sequências de diálogo ao histórico do serial killer, destrinchando a desonra bélica, a insatisfação familiar e os impulsos fanáticos que motivaram tanto os assassinatos quanto o longo período que ele passou impune ou, mesmo quando preso, resolutamente impenitente. Ademais, entrega ao exemplarmente dedicado Mehdi Bajestani dúzias de longos takes silenciosos em que pode construir a linguagem corporal do vilão e expressar os caminhos lógicos tortuosos pelos quais seu personagem justifica seus atos.
De certa forma, no entanto, não é surpresa que Holy Spider se fascine tanto por Hanaei. É o ponto de vista dele que permite a Abbasi repetir aqui a elaboração do grotesco que fez em seus filmes anteriores, retratando o seu psicopata em estados de delírio, paranoia ou êxtase que transcendem com precisão quase cirúrgica a nossa concepção visual e situacional de normalidade. São sequências bem construídas e executadas no sentido que pretendem desorientar, enojar, perturbar… e conseguem. Mas é difícil escapar da sensação de que a violência intransigente do filme está servindo mais a Abbasi como esteticista provocador do que à história que ele precisa contar.
Em entrevistas, o cineasta declarou que Holy Spider não é “um filme de serial killer, mas um filme sobre uma sociedade serial killer”, e ainda frisou que “não queria fazer outra obra sobre as diferentes formas nas quais um homem pode matar e mutilar uma mulher”. Faltou só considerar se, na busca do seu primeiro objetivo, ele não estava impossibilitando o segundo, especialmente dentro da visão muito particular que aplica às suas obras. Faltou a humildade de reconsiderar a própria abordagem, ou, alternativamente, a sabedoria de seu envolvimento no projeto.
É injusto, claro, pedir a um artista que abandone suas sensibilidades, mas é importante apontar quando elas - como em Holy Spider - se revelam desastrosamente equivocadas ao ponto de transformar atos de violência misógina em um produto quase voyeurísticode elaboração de gênero e realização estética.