Foi constrangedor o climão em 2007 no dia em que o Homem-Aranha de Tobey Maguire descobriu que seu tio Ben não tinha sido morto por um bandido qualquer, como ele pensava, e sim por Flint Marko, o Homem-Areia. Pela primeira vez, o espectador lidava com uma correção retroativa de continuidade em uma história do Aranha. O popular retcon já era mal visto por leitores de quadrinhos como uma gambiarra inventada para zerar cronologias, e não ajudou nada que naquele mesmo 2007 a Marvel Comics tenha desfeito o casamento de Peter Parker e Mary Jane com outro retcon, um feitiço de Mefisto. O efeito é que Homem-Aranha 3 acabou com os filmes com Maguire, e Mefisto virou piada nas HQs (e hoje no MCU).
Diz muito sobre o estado dos filmes de super-herói hoje que Homem-Aranha: Sem Volta para Casa tenha o despudor de adaptar livremente “Um Dia a Mais” (a tal HQ de 2007) sem que isso gere desconfiança da base de fãs. O filme substitui Mefisto por Doutor Estranho num trato faustiano decorrente do desfecho de Longe de Casa (2019), em que Peter Parker tenta recuperar seu anonimato com um feitiço - que acaba trazendo para sua realidade vilões de outras encarnações do Aranha do cinema. Por que agora aceitamos o retcon sem reclamar? Porque ele se reveste de nostalgia.
Sem Volta para Casa é uma grande celebração do retcon como um elemento constitutivo da jornada do Aranha. O personagem que viu seu tio morrer e, dia após dia, busca uma segunda chance ao impedir a morte de outras pessoas só poderia ter mesmo no retcon uma razão de ser, e podemos entender o expediente da correção retroativa, poeticamente, como uma tentativa desesperada de reparar o trauma e a culpa. Este terceiro longa do Aranha com Tom Holland toma emprestada toda a estrutura nostálgica de Vingadores - Ultimato e aceitamos de bom grado a passagem repetida desse rolo-compressor de fan services porque afinal pisar e repisar o passado parece ser a sina do Homem-Aranha.
Ou seja, toda a estratégia deste fim de trilogia poderia ser vista como uma chantagem emocional com os fãs (seja os nostálgicos de Sam Raimi, seja os órfãos da mal resolvida fase do diretor Marc Webb) se não fosse a tendência natural do personagem à reparação. No filme, isso tem o potencial de gerar no espectador uma resposta sentimental incomum, porque tomamos todo fan service como uma piscadela autoconsciente para o público mas Sem Volta para Casa combina a piadinha com uma agoniada memória de feridas abertas. Na sessão de imprensa, se ouvia riso e choro.
O fato de Sem Volta para Casa terminar, depois de duas horas e meia, dando uma longa volta para concluir coisas que já esboçava desde o início só comprova que o forte do filme não é a sua dramaturgia do presente e sim um acerto de contas com o passado, olhado de fora. A imagem de Peter Parker em projeção astral sendo removido de seu corpo físico pelo Doutor Estranho é ideal para ilustrar essa situação, e o ano de terapia da Marvel que começou com a Feiticeira Escarlate desconectada de si, e passou pelo metacomentário sobre super-heróis em Os Eternos, só poderia se encerrar com esse olhar do Aranha sobre si mesmo e suas reinvenções.
O problema, com o perdão do desvio marxista, é que a história se repete como farsa. Quando propõe situações trágicas no presente, que exigem outro investimento emocional, o filme patina na representação. É como se o acordo lúdico firmado com o público, sob a proteção da nostalgia, não permitisse traumas novos, e mesmo situações dramáticas reorganizadas - como o duelo revisitado do jovem Peter Parker com o velho Duende Verde - soam falsas e quase paródicas na sua repetição. O fato de Jon Watts rodar quase todas as cenas de ação diante do fundo digital ressalta o artificialismo dessas situações. Se sobra no diretor um humor espirituoso que enriquece os alívios cômicos, falta-lhe traquejo para usar o artificial a seu favor, e em muitos momentos Sem Volta para Casa é um filme francamente feio, enquadrado de qualquer jeito e iluminado sem inspiração. Convém dizer aqui que Sam Raimi tirava de letra o aspecto visual desse artificialismo, e encontrava verdade na representação falseada. Se está disposta a exumar seus corpos, a franquia precisa lidar também com essa realidade.