Shia LaBeouf fez da sua crise existencial um exercício artístico. De plagiador à performer - com uma exibição para se desculpar por ter copiado a HQ de Dan Clowes no curta HowardCantour e uma maratona ininterrupta dos próprios filmes com suas reações transmitidas por streaming - o ex-ator mirim usou a plataforma criada em torno do seu nome para ironizar a indústria hollywoodiana e a si mesmo (nem que seja virando meme). Honey Boy, sua estreia como roteirista em um longa-metragem é mais uma dessas empreitadas. Não só o filme é baseado na sua própria vida, como LaBeouf interpreta o próprio pai.
Acontece que o que antes parecia piada vai se concretizando como uma verdadeira e coerente obra artística. O filme dirigido por Alma Har’el (conhecida por seu trabalho em videoclipes e no documentário Bombay Beach) é um legítimo esforço cinematográfico, elaborado com sensibilidade, atuado com precisão e amarrado por uma construção estética bem resolvida. O fato de narrar parte das desventuras de LaBeouf é certamente um atrativo, mas não é a única fonte de sustentação.
Lucas Hedges interpreta Otis, a versão cinematográfica de LaBeouf, durante a crise que o levou à prisão e ao consequente tratamento contra o vício. É quando a terapeuta (Laura San Giacomo) sugere que ele sofre de transtorno pós-traumático e precisa encontrar a fonte da sua raiva. Entra Noah Jupe como o jovem Otis, na época em que LaBeouf integrava o elenco da série Even Stevens, e seu relacionamento abusivo com o pai, um ex-palhaço de rodeio com histórico de vício em drogas e abuso sexual.
A transição entre os dois momentos de Otis é feita dentro de um set. No primeiro, Hedges, preso a um cabo, é arremessado por uma explosão, em uma clara referência à franquia Transformers. No segundo, Jupe leva uma torta na cara e é igualmente arremessado. Por mais que tenha trocado o nome dos protagonistas e não cite filmes ou séries diretamente, LaBeouf em nenhum momento pretende esconder que o filme trata sobre a sua vida e que a sua percepção dos eventos vem sempre acompanhada de uma mistura de realidade e fantasia, dor e entretenimento, sinceridade e ironia. Daí tornar a sua sessão de terapia sobre o pai um ato público.
Ao interpretar a fonte do próprio trauma, o ator/roteirista vai fazendo as pazes consigo mesmo e com o seu passado. O pai deixa de ser seu inimigo para ser um indivíduo igualmente problemático (e carismático). A boa atuação de LaBeouf não é surpresa, mas a qualidade do texto, do senso de humor e da suas resoluções singelas é. Em meio a todo barulho que seu nome causa a cada empreitada, grita mais alto a sua qualidade como artista.
Por essa ser uma “autocinebiografia”, o autor e protagonista tem controle sobre a narrativa. Assim, ainda que cutuque as próprias feridas, LaBeouf mostra apenas o que quer e conclui a história para a própria satisfação, deixando ainda mais explícito o quê terapêutico do longa. “Vou fazer um filme sobre você”, diz o Otis adulto no seu reencontro com o pai, assumindo mais uma vez a metalinguagem como idioma oficial de LaBeouf, o que é ampliado pelos créditos finais. Ao som de “All I Really Want to Do”, de Bob Dylan, Honey Boy exibe fotos do arquivo da família para deixar claro que entre tantos escândalos, traumas e drogas, há também amor, carinho e a possibilidade de redenção.