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Crítica

Amarelo Manga | Crítica

Poucos filmes nacionais são tão sinceros e contundentes

14.08.2003, às 00H00.
Atualizada em 21.09.2014, ÀS 13H14

Repare no pôster ao lado.

Sim, é uma vagina. De cabelos cor amarelo-manga, como a de colchões mofados, paredes descascadas, rostos desnutridos, remelas, escarros, dentes, mesas, chapéus gastos, carros velhos, cabos de peixeiras e coisas embaçadas pelo tempo. A luz hepática está presente, graças ao trabalho excepcional do diretor de fotografia Walter Carvalho, em todos os fotogramas do voluptuoso Amarelo Manga (2002), de Cláudio Assis.

Reconhecido por sua participação em filmes nacionais como Central do Brasil, Lavoura Arcaica e Carandiru, Carvalho assessora Assis, estreante em longas-metragens. Pernambucano quarentão, expansivo, o cineasta não se contém. Incrível como tenha conseguido, em meio a uma necessidade urgente de se expressar, fazer uma obra tão coerente e segura.

Na pré-estréia ocorrida em São Paulo, embriagado de euforia, Assis deixou claro: "Se você achar meu filme uma merda, eu ficarei feliz de verdade, venha me dizer. Mas se você amar, espalhe, diga pra todo mundo, porque a publicidade de Amarelo Manga não tem dinheiro de majors, nem de porra nenhuma". Famoso pela sinceridade (e pela escolha das palavras), Assis se orgulha de ter gasto apenas R$ 450 mil, numa época em que o longa nacional custa, em média, R$ 3 milhões. "Num país que não tem escola, não tem saúde, não tem nada, você não pode ficar dando R$ 8 milhões para burguesinho falar de suas crises existenciais e passear pelo Brasil. Se é dinheiro do povo tem que respeitar."

E o boca-a-boca aos poucos funciona. Muito já se fala de Amarelo Manga, melhor filme no Festival de Brasília, no CineCeará, bem visto em Berlim e em Toulouse, na França. O diretor de Lavoura arcaica, Luiz Fernando Carvalho, arrisca dizer que o filme de Assis inaugura, com seus personagens que surgem vivos sem precisar de introdução, "uma nova dramaturgia cinematográfica".

Não cabe avaliar aqui se o filme propaga a tal nova revolução. É imperativo dizer, por outro lado, que poucos filmes nacionais são tão sinceros e contundentes. Diante dele, Cidade de Deus é cosmético, sim senhor. Feito por quem vive a realidade abordada, Amarelo Manga sepulta de vez a discussão sobre a estética da pobreza, ao exibir sem vergonhas a miséria, evitar o maniqueísmo e mostrar os marginalizados não como vítimas, mas como fatores viciados da podridão nacional.

Sim, porque se há algum personagem principal no filme, é o povo brasileiro, personificado nos nativos de Recife, capital que guarda, entre os executivos à beira-mar e as palafitas bambas sobre o mangue, uma síntese do país. O centro das ações é o Texas Hotel do Centro Velho, tão pulsante no minucioso retrato de seu microcosmo quanto o Bates Motel de Hitchcock. Ali, quem manda na prática é o homossexual Dunga (Matheus Nachtergaele), cozinheiro e faxineiro, apaixonado pelo açougueiro Wellington Kanibal (Chico Diaz), que trai a esposa evangélica, Kika (Dira Paes). Para completar, vive no Texas o necrófilo Isaac (Jonas Bloch), encantado com a dona de boteco Lígia (Leona Cavalli), mas que acaba transformando, na verdade, a vida de Kika.

Acima da vagina

Como fica claro já no pôster (acima da vagina aparece a frase basilar "O ser humano é estômago e sexo"), o abalo nas convenções sexuais é o que moverá mudanças na vida dos protagonistas: mulheres se masculinizam, machos são questionados. Uma versão cruel do romanceado Eu Tu Eles, Amarelo Manga explica com um didatismo espantoso o mistério da explosão demográfica, do comodismo religioso - e como isso afeta a vida de toda a nação.

E àqueles que vêem o filme apenas como pura escatologia, convém prestar mais atenção. Quando Assis chega em pessoa no ouvido de Kika, vestindo uma camiseta do Ibis (auto-proclamado como o pior time do mundo), e diz que "o pudor é a forma mais inteligente de perversão", seria o mesmo que dissesse: " a sensualidade não deve ser reprimida, deve ser mostrada naturalmente para ser entendida". A dissecação desse mito do "brasileiro pacífico e caliente" faz com que o filme seja, mais do que uma porrada assustadora com toques de humor negro, um testemunho de valor documental e sociológico.

Ao fim do filme, muitas respostas ficam no ar. Se o desfecho desse caleidoscópio fosse definitivo, como no mosaico de Magnólia (de P.T. Anderson, 1999), perderia um pouco do impacto. Assis deixa finais abertos, como feridas, pois sabe bem que a reflexão do espectador é mais importante do que a defesa de uma tese. Aliás, se você procura apenas matar o tempo, não assista a Amarelo Manga.

Nota do Crítico
Excelente!