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Cabra-cega (2004) aborda a resistência armada contra a ditadura brasileira nos anos 60 e 70. O terceiro longa de Toni Venturi - o segundo a tratar de política, depois da estréia em O Velho (1997), documentário sobre o comunista Luiz Carlos Prestes (1898-1990) - se inicia ao som de MPB dos festivais, com imagens de arquivo.
Cavalaria passa, polícia esbraveja, indignados marcham. Em meio à correria, dá para ver no rosto das pessoas o orgulho de se opor ao regime. Mas algumas cenas resgatadas da TV Tupi, hoje de domínio público, mostram o corpo já sem vida de Ernesto "Che" Guevara (1928-1967) escarafunchado na Bolívia.
Assim, desde o primeiro momento a utopia da revolução popular entra em choque com a realidade da repressão. Esse é o conflito que permeará todo o filme - vencedor de cinco Candangos no Festival de Brasília de 2004, Melhor Filme - Júri Popular, Melhor Diretor, Melhor Ator (Leonardo Medeiros), Melhor Roteiro e Melhor Direção de Arte.
Na história, o militante Thiago (Medeiros), baleado no peito no dia em que viu a sua companheira e amada ser capturada pela polícia, precisa passar uns dias no "aparelho" de seu mentor, Mateus (Jonas Bloch). Lá recupera as forças e aguarda novas diretrizes. Sozinho, fechado - e silencioso por medo de ser denunciado - no apartamento, lhe resta esperar. Mas ficar afastado da ação, ouvir notícias de camaradas mortos, começa a lhe fazer mal. No desespero Thiago refletirá sobre a sua vida e o seu engajamento.
Vitórias nossas
Cabra-Cega tem, nessa sua releitura da História recente, muito em comum com Quase dois irmãos (2004). O longa de Lucia Murat também confina um militante setentista de esquerda - neste caso, junto com presos comuns na Penitenciária da Ilha Grande - e o obriga a parar para pensar. Entretanto, são propostas distintas. Toni Venturi não tem a ambição de Lucia, alça vôo mais modesto, mas por isso mesmo resulta mais coerente e conciso. Trata-se do típico pequeno grande filme.
Em um primeiro momento, esse thriller dramático parece querer aplicar uma lição de moral em Thiago. Um companheiro de aparelho, Pedro (Michel Bercovitch), por exemplo, participa de ações mas não deixa de viver a sua rotina acadêmica, muito menos a sexual - vivência que soa perda de tempo para o abnegado ferido. Aos poucos, porém, aprendemos a nos identificar (e a sofrer) com as angústias de Thiago. As suas mínimas vitórias no cárcere privado - descobrir o amor ou aquele LP do exilado Caetano, curtido com fone de ouvido para não chamar a atenção - passam a ser vitórias nossas também.
Ainda que o resto do elenco não se aprofunde tanto nos seus personagens como o talentoso Medeiros, ainda que o texto tenha resquícios de discursos, de diálogo lido - coisa que Venturi se preocupou em tentar limar, como nos relatou - a direção segura não perde o foco da narrativa. Desde o começo equilibra bem a crítica consciente à implosão dos aparelhos e o afago emocional naqueles que um dia perderam a vida ou sobreviveram em nome da liberdade do país.