|
||||
De fato, trata-se de um filme taquicárdico. As primeiras cenas do De Tanto Bater, Meu Coração Parou (França, 2005), do co-roteirista e diretor Jacques Audiard (Read my Lips, A Self Made Hero), baseado no filme Fingers, escrito e dirigido por James Toback, já começam em 220V. Planos fechados, cortes rápidos, diálogos ensandecidos e verborrágicos.
Tom (Romain Duris, de Exílios, Albergue Espanhol), 28 anos, faz pequenos negócios no ramo de corretagem imobiliária ao seu estilo mafioso e violento: coloca ratos no imóvel pra desvalorizar o negócio, expulsa os sem-teto que invadem o local, trata pessoalmente de dívidas com os devedores de modo nada amigável. Muitas vezes, se vê obrigado a proteger seu pai acertando contas com trambiqueiros dessa maneira truculenta e pouco ortodoxa. Assim o filme constrói seu universo niilista, preenchido por pobres e aproveitadores, fracassados, estrangeiros, desiludidos sem perspectiva em seus vazios existenciais.
Mas uma oportunidade inesperada leva Tom a acreditar que pode se tornar, como sua mãe, um grande pianista. Aí o filme muda de ritmo, dá uma acalmada, concentra-se em planos mais abertos e mais demorados. Com muita dedicação, ele começa a se preparar para uma audição com uma virtuose chinesa, que não fala nada de francês. (Repare como há diferentes maneiras de abordar o estrangeirismo na França: em Lila Diz, a personagem chinesa é uma prostituta; aqui, é uma graduada em música erudita). Ambos estabelecem como único elo de relacionamento a música. Cada nota representa uma palavra, cada timbre significa um estado emocional.
Se não fosse a competência do diretor, esse dilema ficaria meio esquemático. A opção do protagonista entre ingressar no mundo belo, sério e artístico, ou se perpetuar nos feios e sujos bas fonds dos negócios lucrativos porém escusos. Aqui, há um dinamismo cênico de deixar qualquer marcapasso em parafuso. Sim, o filme funciona à base de calmantes e estimulantes o tempo todo. Mas essa alternância de estados reativos bipolares não indica qualquer tipo de obviedade. Pelo contrário, são maneiras experimentais de se tatear um caminho para o encontro de algo que não sabemos exatamente o que é.
Talvez esse seja o grande mérito do filme. Não na mudança rítmica, estética e cromática, pois seria simplista demais. Mas em manter as ambigüidades acima das aparências, sem cair em psicologismos fáceis. De Tanto Bater... não chega exatamente a condenar suas crias com formulações estereotípicas. Tampouco é um filme que prega a redenção salvacionista. O pai de Tom, da maneira fora de forma como está caracterizado, é sim um loser. Mas guarda dentro de si uma vontade rancorosa de mudar o estado das coisas e melhorar de vida, assim como o filho, mesmo que tem a plena consciência de que não irá conseguir. Através dessas caracterizações, o filme não fica sendo nem determinista nem transformista de sua realidade nua, crua e podre. Consegue ser muito mais dialético do que bipartidário e mecanicista, explorando com cuidado as incertezas humanas e extraindo um belo conteúdo de seus impasses. De Tanto Bater... é um raro exemplo de que o por-cima-do-murismo não indica apatia nem falta de opinião própria. Haja pulso firme.
Érico Fuks é editor do site cinequanon.art.br