Ruth Negga e Tessa Thompson em cena de Identidade (Reprodução)

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Crítica

Rígido e tenso, Identidade fala de racismo e relação queer pelas entrelinhas

Tessa Thompson e Ruth Negga criam relação rica em subtextos no filme de Rebecca Hall

10.11.2021, às 16H24.

Identidade não tem uma estrutura convencional, ainda mais para um drama “de prestígio” com ambições de Oscar. Adaptando o clássico livro de Nella Larsen, a roteirista e diretora estreante Rebecca Hall (conhecida como atriz, por filmes como Vicky Cristina Barcelona e O Grande Truque) é fiel à índole literária de seu projeto, deixando que cada ato da história se estenda e se faça entender em seu próprio tempo. O resultado é um longa que troca as satisfações dramáticas esperadas de uma narrativa hollywoodiana pela sutileza dos detalhes de sua encenação, que se repetem e rimam entre si.

Hall e seu diretor de fotografia, o espanhol Edu Grau, filmam Identidade usando a proporção de tela 4:3, que troca o aspecto retangular da maioria das produções contemporâneas por um “quadrado” por vezes sufocante. Ao mesmo tempo, escolhem um preto e branco desbotado e encenam os momentos mais importantes do filme em locações esparsas, frequentemente colocando as atrizes principais diante de paredes lisas ou céus limpos, o que destaca como os tons e formas de seus rostos se camuflam bem ao mundo no qual circulam.

Essas são decisões criativas certeiras para a história que Identidade quer contar. Nossa protagonista é Irene (Tessa Thompson), uma dona de casa e ativista social que, durante um passeio por um lado (branco) da cidade que normalmente não frequenta, reencontra a amiga de infância Clare (Ruth Negga). Irene fica surpresa - e um pouco horrorizada - ao descobrir que a amiga se passa por branca e é casada com um banqueiro racista (Alexander Skarsgard).

Conforme Clare se insinua na vida de Irene, a presença desperta velhos sentimentos e torna evidentes as rachaduras na vida que a protagonista se esforça para retratar como perfeita, modelo de uma felicidade que ela quer acreditar possível para os negros nos EUA. A tensão que perpassa as interações das duas é tão social, intelectual, quanto é sexual e afetiva - “não estamos todos nos passando por alguma coisa, no fim das contas?”, pergunta Irene para o amigo Hugh (Bill Camp) em cena revelatória do filme.

Assim como o livro de Larsen, Identidade dá a entender que a conexão entre as protagonistas, especialmente da parte de Irene para com Clare, é mais do que fraternal. Há uma atração e uma repulsão mútuas aqui, e a dupla formada por Thompson e Negga expressa essa contradição de forma geniosa - a primeira, (mal) camuflando o seu desejo nas flutuações de humor que denunciam seu nervosismo quando está ao lado da “amiga”; a segunda, encontrando infinitos olhares e sorrisos diferentes para comunicar um anseio que não ousa se anunciar em voz alta.

Haverá quem clame por uma confirmação desse subtexto queer, mas Identidade não quer simplificar para os espectadores a naturalmente complicada elaboração de uma vivência lésbica ou bissexual, em plenos anos 20 do século XX. Mais até do que isso, parece ser da natureza do filme deixar para as entrelinhas suas considerações mais cruciais - como quando aborda a depressão de Irene através de uma série inicialmente inconsequente de cenas em que ela aparece desconectada da vida doméstica que leva, ou endereça a questão da desigualdade social dentro da comunidade negra ao mostrar repetidamente a empregada da protagonista, Zu (Ashley Ware Jenkins), cortando legumes na cozinha.

São essas e outras rimas visuais que fazem de Identidade um filme contundente e satisfatório para o espectador atento, mesmo com sua estrutura narrativa não convencional e a natural austeridade de sua trama. Nem surpreende que Hall tenha escolhido uma abordagem tão delicada para seu filme, visto que ele é tão cheio de potenciais problemáticas, da forma como ataca o colorismo à questão que coloca sobre a performatividade do próprio conceito de raça - e, portanto, do racismo.

Identidade se coloca na posição de tentar compreender e expressar, o tempo todo, as pressões que suas personagens principais sofrem como mulheres, mulheres negras, e até possivelmente mulheres negras lésbicas ou bissexuais. Faz isso ao prestar atenção em cada ritmo de fala, em cada recorrência de rotina, em cada detalhe de linguagem corporal, e exigindo que prestemos também. Olhar tão de perto para mulheres ainda tão raramente enxergadas de verdade é, por si só, revolucionário.

Nota do Crítico
Ótimo