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Diários de Motocicleta | Crítica

<i>Diários de motocicleta</i>

06.05.2004, às 00H00.
Atualizada em 21.09.2014, ÀS 13H16

Diários de motocicleta
The Motorcycle Diaries
Argentina/Brasil/Chile/ Inglaterra/Peru, 2004
Drama - 130 min.

Direção: Walter Salles
Roteiro:
Ché Guevara (livro), Alberto Granado (livro), José Rivera

Elenco: Gael García Bernal, Rodrigo de la Serna, Jaime Azócar, Ulises Dumont, Facundo Espinosa, Susana Lanteri, Mía Maestro, Mercedes Morán, Jean Pierre Noher

Ernesto "Che" Guevara de La Serna (1928-67), revolucionário e líder político, foi um dos comandantes guerrilheiros que, ao lado de Fidel Castro, lutou contra o governo de Fulgencio Batista em Cuba e entrou vitorioso em Havana em 1959. Alguns anos depois, no auge da vitória e descontente com o trabalho burocrático que o esperava na Cuba pós-revolução, ele deixou a ilha e partiu para organizar guerrilhas na América Latina em 1965. Acabou fixando-se na Bolívia, onde foi morto em 8 de outubro de 1967.

Guevara é considerado o arquétipo da rebeldia poética e sua figura, imortalizada pelo fotógrafo Alberto Korda, tornou-se uma das mais famosas e copiadas imagens do século 20. Nela, de boina, cabelos revoltos e bigode, El Che lança um olhar quase profético à distância.

Todo mundo conhece a história. Todo mundo conhece a imagem. Mas o passado desse admirável argentino, "um dos mais completos seres humanos de nosso tempo" segundo o filósofo Jean Paul Sartre, ainda não tinha sido explorado em um veículo de massa como o cinema.

A idéia de contar a história do jovem Ernesto Guevara, anos antes dele se tornar o "Che", partiu do produtor executivo Robert Redford, que chamou o brasileiro Walter Salles, diretor/escritor de Central do Brasil e Abril despedaçado, para dirigir o filme. O ponto de partida para o roteiro foram dezenas de biografias do revolucionário e, principalmente, dois livros de memórias: Con el Che por Sudamérica, de Alberto Granado, e Diários de motocicleta, do próprio Guevara. Ambos os livros registram as memórias de Ernesto e Alberto em sua viagem da Argentina à Venezuela no ano de 1952. Para cimentar o texto, horas de conversas com a família de Che e, principalmente, com Alberto Granado, hoje com 83 anos de idade.

Depois de quase dois anos de pesquisas - que incluiram a localização dos cenários verídicos pelos quais passaram Guevara e Granado -, o resultado de tamanho empenho chegou às telas no Festival de Cinema de Sundance com enorme alarde. A produção foi aclamada no evento e semanas depois foi selecionada para concorrer no prestigiado Festival de Cannes. O sucesso, sem dúvida, é mais que merecido.

Os diários nas telas

Na história, dois jovens estudantes argentinos, o bioquímico Alberto Granado (Rodrigo de la Serna) e o médico Ernesto Guevara (Gael Garcia Bernal) decidem conhecer a América Latina numa viagem de 8 mil quilômetros, de Buenos Aires até Caracas. Montados em uma motocicleta Norton 500, modelo 1939, carinhosamente apelidade de "La Poderosa", os amigos partem pelo continente que não conhecem nem mesmo dos livros, já que em sua juventude foram apresentados na escola às culturas européias, mas nunca aos seus ancestrais sulamericanos.

A aventura começa com ares de road movie. Paisagens e povoados, lindamente fotografados por Eric Gautier, desfilam na tela enquanto os inocentes argentinos conhecem culturas e lutam contra o clima, a falta de dinheiro e a gradual desintegração de La Poderosa. Entretanto, vai aos poucos mudando de forma, conforme a moto se despedaça e cresce a compreensão da dupla sobre a extensão da injustiça social e miséria da América Latina. No caminho, tomam contato com a literatura de esquerda e estabelecem o contato com o povo, a "raça mestiça", que será simbolizado pelo diretor numa travessia de Guevara do Rio Amazonas.

Curiosamente, apesar do excesso de informações de pré-produção, Diários tem uma estrutura narrativa bastante simples e se assemelha aos filmes de origem de heróis da ficção. Neles já conhecemos os feitos futuros do protagonista e somos apresentados a sua juventude e formação de caráter. Eventos inicialmente insignificantes crescem em importância no decorrer da saga e serão catalisadores de um processo que culminará na transformação, por exemplo, de Clark Kent em Superman, de Anakin em Darth Vader, de Peter Parker em Homem-Aranha e - por que não? - de Guevara em El Che.

A mudança é sutil. O filme preocupa-se em não misturar as fases da vida de Guevara, e Gael Garcia Bernal faz um excelente trabalho em impedir que o revolucionário aflore prematuramente. No entanto, seria injustiça cobrir de louros o consagrado astro mexicano quando o desconhecido Rodrigo de la Serna faz um trabalho ainda superior. É surpreendente a transformação dele em Alberto Granado. Só mesmo quem pôde vê-lo ao vivo, completamente descaracterizado, na coletiva de imprensa do filme, para entender isso. Rodrigo, que na vida real é primo de segundo grau de Che Guevara, tem uma sutileza e talento que devem alavancar uma carreira no cinema internacional.

Claro que há alguns pontos questionáveis na obra também, como o excesso de passagens "didáticas", que servem para martelar na cabeça dos mais desavisados o futuro de Guevara. O discurso politizado no leprosário de San Juan é um bom exemplo, assim como a inserção de tomadas branco e preto de diversos personagens no final do filme - outra reafirmação do discurso sobre a raça mestiça. Felizmente, é possível relevar tais excessos e os créditos finais - com fotos reais da viagem - dão o toque que faltava ao filme, ancorando-o na realidade.

Diários de motocicleta é tocante e indispensável. É um dos melhores trabalhos de Walter Salles e possui uma característica comum às obras simples, mas dotadas de conceito: ele cresce em você conforme passa o tempo. E esse é um dos maiores elogios que consigo imaginar para um filme.