O dramaturgo santista Plínio Marcos de Barros (1935-1999), se tornou “Maldito”, perseguido pelos bons costumes, por ter escancarado sem meios termos os vícios da sociedade nacional dos anos 60 e 70. Foi caçado pela censura militar por ter colocado os marginalizados, as prostitutas, os bandidos, os loucos e os homossexuais como figuras principais de suas peças.
Dizia, enquanto tentava vender seus livros na porta de teatros, que sua obra se tornava, cada dia mais, um clássico da dramaturgia brasileira, porque a realidade do Brasil não se modificava: “Sou o analfabeto mais premiado do país; gostaria que minhas peças estivessem superadas, mas não estão”.
De fato, as feridas denunciadas por Plínio Marcos não cicatrizaram, só aumentaram de tamanho com o tempo. Hoje, continuam atuais. Assim, a primeira qualidade de Dois perdidos numa noite suja (2002), versão do diretor José Joffily, é justamente alterar o conteúdo da peça homônima lançada em 1966, e conservar as marcas principais do texto, fazendo parecer que o próprio dramaturgo o imaginou assim. Afinal, o tema da imigração, do sonho de prosperidade nos Estados Unidos, que ainda pode ser percebido em pleno século XXI, foi estimulado ao longo dos últimos setenta, oitenta anos, sempre envolvido por certa controvérsia.
No roteiro de Paulo Halm, os dois excluídos sociais da periferia paulistana se transformam em um homem e uma mulher, imigrantes brasileiros em Nova York, no verão que antecede, e no inverno que sucede, os ataques terroristas de 2001. Lá, Paco (Débora Falabella) e Tonho (Roberto Bomtempo) seguem a trilha de muitos e sonham em “fazer a América”, se dar bem em dólares e provar, aos que ficaram no Brasil, que foram bem-sucedidos.
A inteligente montagem do veteraníssimo Eduardo Escorel (Terra em transe, Macunaíma, Eles não usam black-tie), baseada no vai-e-vem entre passado (verão) e presente (inverno), provoca o espectador, pois não apresenta marcações cênicas visíveis para diferenciar os dois tempos. O passado apresenta os dias em que Tonho e Paco se conhecem, armam pequenos golpes - e Tonho acaba preso. No presente, depois que ele sai do presídio, decidido a retornar ao Brasil, a relação de cumplicidade dos dois se torna ainda mais aguda e reveladora.
Mineiro ingênuo de Governador Valadares, Tonho sofre na mão da decidida menina, andrógina, drogada e prostituída, de vida misteriosa, e que sonha em se tornar uma estrela da música. E as circunstâncias exigem que os dois dividam as suas experiências, não sem tropeços, descobertas e algumas porradas.
Com os diálogos cortantes, típicos de Plínio Marcos, Joffily monta um cenário intimista de retumbante desilusão, centrado no apartamento abandonado que a dupla divide. A 5ª avenida e a região da Broadway, desglamourizadas, não escondem o fracasso daqueles que, alvos do preconceito e da falta de oportunidades, rumam de um lado para o outro ainda com um fiapo de expectativa.
Se há algum deslize na versão de Joffily - a segunda vertida ao cinema, depois de uma tentativa de Braz Chediak, em 1971 -, é o predomínio, em alguns momentos, de um vestígio de teatralidade nos diálogos. Débora Falabella oferece uma atuação digna do prêmio que recebeu no Festival de Brasília, mas acaba sobrecarregada, uma vez que o texto conserva muito dessa prolixidade. Na tela, a situação pede mais atmosfera, menos veemência... Por si só, sem precisar de reforço, a situação vivida pelos personagens já é assustadoramente trágica.