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Fahrenheit 11 de Setembro | Crítica

<i>Fahrenheit 11 de setembro</i>

29.07.2004, às 00H00.
Atualizada em 04.11.2016, ÀS 11H05

Fahrenheit 11 de setembro
Fahrenheit 9/11
EUA, 2004
Documentário - 116 min.

Direção: Michael Moore

Bush recebe a notícia de que os EUA estão sendo atacados em 11/9 e continua a ler Minha cabra de estimação para as crianças

Moore tenta convencer congressistas a enviarem seus filho para o Iraque

Eu peço a todas as nações que impeçam esses assassinos terroristas. Agora, olha só esta tacada

Moore conversa com uma mulher que perdeu o filho no Iraque

Vá arrumar um emprego de verdade, aconselha Bush a Moore

Na última cena, George W. Bush ganha a palavra. As imagens de arquivo exibem um pronunciamento acerca da Guerra do Iraque, da queda do mesmo Saddam Hussein que driblou Bush Pai em 1991. Revanchista, o presidente dos EUA evoca o que diz ser um ditado texano: Se você me engana uma vez, você é o problema. Se me engana duas, o problema sou eu. Diretor e narrador do filme, Michael Moore corta o discurso do candidato à reeleição. A sua voz até ali maliciosamente mansa ganha tom de convocação: Nós não vamos nos enganar de novo, Sr. Bush!

Podem condenar o cineasta bonachão por qualquer crime - leviandade, oportunismo, exagero, manipulação, má fé - menos por hipocrisia. Em nenhum dos momentos que precedem o gran finale Moore assume para si as responsabilidades de um repórter, de um historiador, muito menos de um documentarista. Fala, sim, com todas as letras, de que lado está. Ele não esconde que o seu filme é unicamente uma arma política e ideológica na luta contra Bush. E pelo andar das premiações e das bilheterias, ninguém parece se incomodar com o discurso enviesado do pseudodocumentário. Imparcialidade? Não tem lugar em Fahrenheit 11 de setembro (Fahrenheit 9/11, 2004), uma introdução sentimentalista ao contexto político pós-WTC.

Tudo bem que Bush não é mesmo muito difícil de desqualificar - o próprio presidente o faz quando gagueja nomes em árabe. Não tem problema se o liberal mercado editorial norte-americano recebe, a cada semana, um novo e bombástico livro-denúncia contra o governo, a exemplo das recentes obras dos jornalistas Bob Woodward e Greg Palast e dos ex-homens do governo Richard Clarke e Paul ONeill. A pauta já está saturada, ninguém apóia mais a guerra, já sabemos de que lado está o Bem. Mas é irresistível seguir a cruzada de Michael Moore. Ele ganhará uma estrela de cotação de jornal para cada caipira sulista que converter aos democratas.

Caseiro, cronista, bombeiro

Não é difícil entender o seu encanto. O produto Moore visa unir as minorias. Personifica os losers com seu corpo rotundo, os nerds com o seu visual óculos/boné e os marginalizados da classe baixa dos EUA com a sua camisa xadrez surrada e o seu provincianismo de quem se diz, com orgulhosa reiteração, um legítimo filho de cidade pequena. Moore defende o oprimido naquilo que lhe é mais caro: a afronta ao sistema. Seja uma fábrica de carros na sua Flint natal ou a maior rede de mercados do país, nenhum organismo está imune à provocação.

Quem se oporia à tentação, aqui, de vê-lo desafiar os deputados, a Embaixada da Arábia Saudita e Bush em pessoa? Moore, o sujeito que desfila diante do Congresso num carro de sorvete, é um homem do entretenimento, sabe disso, e deve ser tratado como tal. Possui sarcasmo afiado - repare no breve riff da claptoniana Cocaine quando é revista a carreira do presidente. Ostenta eficiente senso de montagem - a cada mãe que chora pelo soldado morto segue um discurso belicista do presidente, e vice-versa. Sabe como poucos fazer perguntas constrangedoras sem a menor vergonha na cara. E ridiculariza Bush com todo o capricho que economizou em Charlton Heston.

Mas Michael Moore não acerta sempre. Por mais que o conteúdo de Fahrenheit seja mais consistente que o de Tiros em Columbine (Bowling for Columbine, 2002), as insinuações que levanta entre a família Bush e os petroleiros do Oriente Médio são rasas. Quando acusa um complô Bushes-sauditas-Bin Laden, por exemplo, falta dizer que a família dirigente do país árabe, americanófila, vive numa guerra interminável por poder contra o milionário Osama, e não que são aliados de conspiração, como o filme dá a entender.

O fato é que as grandes reportagens não são a especialidade de Moore. Ele domina, com certeza, a área da crônica social. Os melhores momentos da sua narrativa não falam do Iraque, da Arábia, nem de Osama. Tratam com perspicácia e humor do estado de terror que se instalou nos EUA. Assim, caseiramente, no seu quintal, Moore reúne a propaganda do pára-quedas e do cofre antiterrorismo, o caso do leite materno e do desabafo na ginástica, o policiamento em aeroportos e o funesto Ato Patriota para fazer um retrato autêntico da Nação do Medo.

É nesse instante que o título original porcamente traduzido ao português melhor se justifica. Fahrenheit 451, romance publicado por Ray Bradbury em 1951, virou filme de François Truffaut (1932-1984) em 1966 antes de servir de trocadilho em 2004. Na trama futurista, um governo ditatorial ordena que bombeiros incinerem qualquer tipo de livro - 451º F é sua temperatura de combustão. Um dos bombeiros percebe que aquilo ofende a liberdade de pensamento e revolta-se contra todos. Fahrenheit 9/11 pode até ser um documentário discutível, mas Michael Moore é um bombeiro imprescindível no momento.

Nota do Crítico
Bom