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Em 1931 a indústria do cinema nos Estados Unidos ainda não lidava bem com a sonorização surgida em 1927, mas já se organizava em volta dos grandes estúdios em Hollywood. Enquanto isso, a coisa apenas engatinhava no Brasil, e o drama mudo Mulher é uma experiência daquele ano.
Na história, Carmem (Carmem Violeta) mora com a mãe e o marido beberrão numa casa apertada. Faz vários dias que ele não aparece por lá. Cansada de sofrer, ela declara o seu amor ao namorico secreto que brotou da insatisfação. Dá tudo errado: o amante a abandona e o marido volta para casa só para expulsá-la do lar. z
A mulher - o título incisivo e a narrativa até aqui sugerem que virá a maior lição de moral machista contra essa adúltera - se perde nas ruas. Doente, ela desmaia em público, e acaba levada à mansão de Flávio (Celso Montenegro) por um homem que a socorreu. O dono da casa primeiro desconfia. Acha que Carmem quer mesmo é dar um golpe do baú. Aos poucos, porém, ele descobre o quanto essa mulher apaixonada foi refém da vida. Flávio, ele também, viu-se largado pela amada, trocado por um sujeito mais abonado. Começa aí uma relação de cumplicidade - que sofrerá também alguns percalços.
Começava-se, na época, um esboço de indústria nacional, a Cinédia - que não deixou de ser só um projeto, como os esboços que se seguiram, Atlântida, Vera Cruz... Contudo, a Cinédia rendeu alguns frutos, e este filme do diretor Octávio Gabus Mendes (1906-1946), que agora ganha restauração da Cinemateca Brasileira, da Rob Filmes e da Petrobrás Distribuidora, é um deles.
O trabalho de recuperação - que se estendeu por um ano e meio em mais três outras obras, os chamados Clássicos da Cinédia - foi quase uma arqueologia. Apenas a trilha sonora em vitaphone, que ganhou uma nova sincronização com as imagens em preto-e-branco, era conservada nos arquivos da Cinemateca Brasileira. Todos os rolos do filme em si estavam em ruínas. O que se vê hoje na tela é o esforço máximo de salvamento. Trechos nunca recuperados ficam como lacunas escuras na telona, fotogramas vários ficaram bem desgastados mesmo, mas isso não chega a comprometer a experiência.
Além da lógica teatral
Diz-se "experiência", já duas vezes, porque naquele tempo não havia uma gramática definida de cinema como temos hoje. Os paradigmas vinham muito do teatro e da falta de praticidade dos pesados equipamentos de então: posicione a câmera num ponto e faça os atores se enquadrarem nela. O resto era experimentar, quebrar galhos e ver como ficava.
É assim que ocorre em boa parte de Mulher. Repare como as paisagens do campo servem de fundo para o casal que discute a relação - preferencialmente debaixo de uma árvore, para que a luz não afete o trambolhão Mitchell que o diretor de fotografia maneja com dificuldade.
Acontece que o diretor de fotografia de Octávio Mendes é um homem que viraria lenda no cinema brasileiro: Humberto Mauro (1897-1983). É graças a ele que as experiências aqui superam as limitações formais de 1931. Mauro subverte aquela lógica teatral e arrisca o que, dez anos depois, se tornaria lei: quem se mexe são os atores, a câmera é que deve se esforçar para alcançá-los.
Os enquadramentos bem pensados surgem aos poucos. Closes oblíquos em rostos, pegos de baixo para cima, perigam filiar o trabalho de Mauro ao contemporâneo Expressionismo alemão. Já as sequências no clube, à beira da piscina, quando a câmera passeia de roda em roda social, seguindo fielmente de planos abertos a meios planos e planos fechados, são emblemáticas de um talento para o olhar.
Ainda que haja avanços - e 1931 foi um ano rico deles, principalmente as regras quebradas pelo überclássico Limite, de Mário Peixoto - predomina um certo constrangimento com os limites do cinema. A enorme quantidade de intertítulos - cujo lirismo pode soar engraçado hoje - evidencia um filme que não vê a hora de trocar o mudo pelo falado.
Mesmo assim, a proposta ficcional de Gabus Mendes (pai de Cassiano, aliás) surpreende. Mulher, no fundo, elogia o amor dos justos numa época de arranjos. E escancarar a conduta de escaladores sociais e amores de conveniência deveria ser um tabu nos corretos anos 30.