O ursinho de pelúcia não dura nem dez segundos na cena que abre Incuráveis (2006). São quatro tiros, e lá se vai o símbolo felpudo dos enamorados. A paixão é bela no filme de estréia do roteirista, compositor e diretor carioca Gustavo Acioli, mas é também efêmera. E o urso representa um pertencimento, uma trégua, uma cura, que não serve aos dois turbulentos protagonistas do filme.
O suicida (Fernando Eiras) conhece a prostituta (Dira Paes) num bar, cena filmada no Rio Scenarium. Oferece-lhe 500 reais, e tudo o que ela tem a fazer é escutá-lo por uma noite. Até aí ninguém sabe que o homem pretende encerrar a vida com um tiro na cabeça pela manhã. Isso ele explica à mulher assim que eles entram no quarto que será cenário de quase todos os 88 minutos da película. No quarto eles conversam, acabam transando - e o mais difícil, o mais improvável, no quarto eles se conhecem.
O personagem de Eiras (prêmio de melhor ator no Festival de Brasília) procura alguém para lhe ouvir, já que durante os momentos mais importantes de sua vida não soube dizer o que sentia. A personagem de Dira quer que lhe digam o seu nome no ouvido. Uma prostituta que soube bem se expressar, dar prazer a tantos, mas nunca teve retribuição digna desse nome. Resumindo, eles se completam - não porque tenham nascido um para o outro, a coisa não é simplória assim, mas porque um pode entender o outro.
São os males da incomunicabilidade, do engessamento das relações, que no fundo servem de contexto ao filme. Ninguém é completo até que tenha achado sua metade, ainda que sua vocação seja a da eterna e incurável procura. Essa imagem da cara-metade não deixa de ser cafona, mas ela é perfeita aqui, esteticamente falando, por conta da fotografia de Lula Carvalho. Em seu primeiro longa de ficção solo, em que não opera a câmera para o pai, o diretor de fotografia Walter Carvalho, Lula assina sozinho o bonito uso das sombras. O tempo todo os corpos e as faces de Eiras e Dira surgem pela metade, envoltos pela semi escuridão do quarto.
Tentar mapear o estado de espírito dos personagens a partir da fotografia - se a abertura da janela permite vê-los por inteiro ou se a contraluz esconde completamente suas feições - pode ser um interessante jogo para o espectador. Porque certamente é um jogo para os personagens, como os próprios assinalam. Em cena, trava-se uma contenda de perde-e-ganha, disputa jogada nas palavras.
Ah, sim, as palavras. Incuráveis se baseia na peça A Dama da Lapa, de Marcelo Pedreira - e esse dado, isolado, já daria abertura para a clássica crítica do teatro filmado. Os diálogos declamados, a coreografia ensaiada, a distância média que a câmera mantém dos atores, como se respeitasse o proscênio, sem se aproximar como deveria, frequentemente dificultam a transformação de roteiro teatralizado em cinema.
Detonar o filme a partir daí seria fácil. O problema é que isso taparia a visão das suas qualidades, algumas delas citadas nos parágrafos acima. Uma indisposição desde o começo, por fim, não deixaria notar o belo e silencioso plano-contraplano que encerra o filme. Ali a câmera se mantém nos rostos do suicida, depois no da prostituta, por um tempo exato, cronometradíssimo, suficiente para captar significados que não cabem em verbo algum. Ali Acioli faz cinema.