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O mundo (Shijie, 2004) mostra em sua maior parte um retrato de cores sombrias de uma China que se ocidentaliza e constrói um mundo de fachada para turistas, escondendo atrás desse cenário homens e mulheres que são operários ou fantoches dessa transformação.
Boa parte do filme se passa num parque chamado O Mundo, que recria prédios e paisagens famosos, caso da Ilha de Manhatan com as torres gêmeas, a Torre Eiffel, as Pirâmides do Egito, etc. A pretensão de reconstruir na China todas as maravilhas da Terra tem como contraponto a perda de identidade do país. Os personagens do filme trabalham no parque e em função dele. Essa constante interação com a representação da realidade coloca essas pessoas em cheque com suas próprias existências, dura demais para ser falseada.
O filme trabalha o tempo inteiro com essa questão do simulacro: o show com belas mulheres para turistas ver - e aí o filme explode em falsas cores -, a falsificação de roupas de grife, os grandes prédios que imitam a arquitetura ocidental. Até mesmo o discutível recurso de animar algumas passagens do filme - geralmente as que sucedem um recado deixado no celular - seguem essa linha de reproduzir, de falsear a realidade, questionando até que ponto somos de fato de carne e osso ou uma mera representação, animação, de uma ordem mundial cada vez mais apegada à aparência e ao consumo.
Num dos grandes momentos do filme, bastante significativo, irmaõzinha, apelido de um interiorano que vai trabalhar na construção civil, está à beira da morte após ter se acidentado no prédio e deixa por escrito seu último pedido. Não são frases, mas contas, indicando suas dívidas. Na mesma linha, temos a sua família, com ele já morto, esperando numa ante-sala. Imaginamos que seja o seu corpo, mas não! Esperam na verdade o dinheiro da indenização. Esse sim um corpo importante na nova ordem das coisas.
Jia Zhang-ke, diretor de Plataforma, já tem uma legião de fãs no Brasil. Fiquei arrebatado com esse seu filme e muito incomodado com a lentidão e fragmentação da narrativa. Incômodo que precisa ser melhor entendido e assimilado. Quem sabe numa segunda vez eu consiga prestar mais atenção na luz, na câmera, na montagem e em muitas outras coisas que o filme tem a dizer, me descolando um pouco da opacidade humana dos seus personagens. Em todo caso, fica a dica do filme e uma pergunta: que mundo é esse?
Cesar Zamberlan é editor do cinequanon.art.brP.S. - Terminado o filme, parece clara a intenção do cineasta com sua estridente seqüência inicial na qual Tao procura, desesperadamente, na coxia por um curativo, ou melhor, um band-aid. Mais forte ainda, o plano que traz o crédito com o nome do filme, no qual um catador de latas pára e observa o parque ao fundo. Isso é cinema.