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O Retorno | Crítica

<i>O retorno</i>

27.05.2004, às 00H00.
Atualizada em 21.09.2014, ÀS 13H16

O retorno
Vozvrashcheniye
Rússia, 2003 - 105 min.
Drama

Direção: Andrei Zvyagintsev
Roteiro: Vladimir Moiseyenko e Aleksandr Novototsky

Elenco: Vladimir Garin, Ivan Dobronravov, Konstantin Lavronenko, Natalya Vdovina, Galina Petrova

Existe esse mito de que crítico de cinema só gosta de coisa chata. Não é bem assim. Qualquer pessoa que vai cinco vezes por semana no cinema, cinéfilo ou não, acaba desenvolvendo um certo senso de julgamento. Clichês se tornam mais e mais irritantes. Ouvir sempre as mesmas piadas, ver repetidos a esmo os mesmos efeitos digitais, conferir sempre os mesmos finais felizes, uma hora cansa. E tudo aquilo que foge dessas facilidades, que oferece um razoável nível de elaboração, não demora a ser taxado de "cansativo", "difícil".

Esse desabafo serve, entre outras coisas, para situar o leitor diante do filme russo O Retorno (Vozvrashcheniye, 2003), do estreante Andrei Zvyagintsey. Temos aqui tudo de bom e do melhor para quem não aguenta mais as fórmulas entregues de bandeja ao grande público: linguagem televisiva, diálogos que não levam a nada, personagens rasos e idéias recicladas. O atual campeão do Festival de Veneza - com cinco prêmios, inclusive Melhor Filme - atende os espectadores que sentem falta de densos dramas humanos, que gostam de ser envolvidos, incomodados, chamados a refletir.

Na trama, os irmãos Andrey (Vladimir Garin) e Ivan (Ivan Dobronravov) vivem os obstáculos da adolescência: a necessidade de ser aceito, o desafio de largar a saia da mãe. Mas o retorno do pai (Konstantin Lavronenko), depois de doze anos, inflama essa rotina. Andrey e Ivan não se lembram dele. Instala-se o constrangimento. Para piorar, o pai não explica o tempo de afastamento - apenas diz aos meninos que sairão de férias, para pescar, numa viagem entre homens, para se conhecerem melhor.

Road-movie de formação

Temos aqui a mescla de dois subgêneros narrativos: o road-movie e o romance de formação. O primeiro trata de longas viagens que revelam mais da mente dos viajantes do que da própria paisagem. O segundo diz respeito às grandes histórias de construção do caráter de quem abandona a ingenuidade pueril para perceber a própria individualidade. O falado Diários de motocicleta (de Walter Salles, 2004), por exemplo, é o road-movie de formação de Ernesto Guevara. Aliás, a comparação é providencial: o que Diários tem de didatismo, de simplificação, O Retorno tem de complexidade.

A relação que se estabelece entre o pai e os filhos é um verdadeiro ensaio pedagógico. A resposta de Andrey à aproximação será diferente da de Ivan, pelo simples fato deste ser o caçula e aquele o mais velho. Pequenas coisas como o jeito que o pai olha para uma mulher na rua, o jeito como pede comida no restaurante e o jeito como diferencia os dois filhos se tornam motivo para novas desconfianças.

E o pai impõe respeito. Dessa forma, o conhecimento não se dá por trocas recíprocas, mas por atritos, por concessões. Andrey apanha por desobedecê-lo, mas em seguida é recompensado com o direito de dirigir o carro. Contrário a esse tipo de "educação", Ivan resiste. Assim, o caçula, que antes era ridicularizado pelos outros garotos, sofre a duras penas a formação da sua maturidade. E disso o filme tira a sua força.

O tempo de pensar

Zvyagintsey trabalha essa metáfora freudiana de "matar o pai para conquistar independência" com segurança, com autoridade. Mas não se restringe a ela. O fato de O Retorno ser um filme da Rússia é emblemático. Dá para levantar, sem medo, a seguinte interpretação: como Ivan e Andrey, os russos criados nos anos 90 não reconhecem no antigo Comunismo um laço de sangue. E a severidade do pai, personificação da ex-União Soviética totalitarista, já não atende mais aos anseios de uma geração que se vê abandonada, necessitada de uma boa política renovadora, humanista e solidária.

O filme dá espaço a esse tipo de reflexão pois não atropela o entendimento do espectador, não lhe corta o direito de tirar conclusões próprias. O seu desenvolvimento é lento e introspectivo, sim, mas nunca maçante. Os planos não se estendem em excesso. Pelo contrário, cada fotograma é preenchido por novas informações, sem nunca parecerem vazios ou redundantes.

Basta apenas ao espectador saber respeitar o ritmo do filme. Essa é outra peculiaridade que todo crítico deve conservar: se livrar da mastigação apressada da televisão e apreciar o tempo do cinema. A velocidade é outra. O olhar deve ser outro também. Ter tempo para pensar, para se embrenhar em uma obra como O Retorno, faz com que ela fique ruminando na cabeça muito além do fim da sessão.

Nota do Crítico
Ótimo