Paul Schrader é cristão - e, como todo cristão, o perdão é um tema espinhoso para ele. Prega o dogma do cristianismo que o perdão de Deus só é condicional ao arrependimento do fiel, que o homem pode pecar quantas vezes quiser, desde que peça perdão a Deus com sinceridade. Feito isso (e rezados alguns Pai-Nossos e Ave-Marias), a passagem para o Paraíso está basicamente garantida. Mas e um assassino? Deus perdoa. Um terrorista? Deus perdoa. Um abusador? Pois é, Deus também perdoa. Não importa a barbaridade que se faz em vida, via penitência se acessa o Além-Vida da cristandade. A dificuldade de conciliar essa magnanimidade de Deus com a justiça (e o ressentimento, e a raiva, e a violência, e a dor) do homem é um dos dilemas milenares do cristianismo.
Jardim dos Desejos, filme que Schrader dirigiu em 2022 mas só chegou ao Brasil recentemente, arquiteta a partir deste dilema uma provocação até meio óbvia: há perdão para um nazista? Já nos primeiros 20 minutos, o filme estabelece que o jardineiro Narvel Roth (Joel Edgerton) tem um passado sombrio como líder de um grupo neonazista violento, mas que ele se voltou contra os ex-companheiros e entrou para o programa de proteção às testemunhas do governo dos EUA. A patroa Norma (Sigourney Weaver) sabe disso, mas sua sobrinha-neta Maya (Quintessa Swindell), que ela cinicamente coloca sob os cuidados de Roth como aprendiz do jardim que ele administra, não sabe. Schrader usa uma ameaça difusa do passado da jovem, que é viciada em drogas, para perturbar a normalidade frágil do cotidiano desses personagens.
Para o espectador acostumado com o estilo espartano de obras recentes do cineasta, como Fé Corrompida (2017) e O Contador de Cartas (2021) - junto com este filme, eles formam o que foi informalmente batizado de “Trilogia do Homem Numa Sala” por Schrader e seus admiradores -, Jardim dos Desejos é uma surpresa de expressionismo cinematográfico. Junto ao seu diretor de fotografia habitual, Alexander Dynan, Schrader encontra o ritmo de uma história que serve de desculpa para a reflexão teológica do perdão através de demoradas tomadas do jardim cuidado pelo protagonista: as flores que desabrocham em close-up sobre os créditos iniciais, e que cintilam à luz fluorescente dos faróis do carro em uma cena lá pelo terceiro ato, servem de lembrança da beleza que pode nascer de mãos atribuladas por todas as dificuldades e vicissitudes do ser humano.
Esse Schrader surpreendentemente esperançoso floresce (trocadilho 100% intencional) também na escolha de Devonté Hynes para a trilha sonora. Conhecido pelo pseudônimo musical Blood Orange, mas também por compor trilhas para Palo Alto, We Are Who We Are e Queen & Slim, o artista traz para Jardim dos Desejos os sintetizadores contemplativos que são sua marca no cenário do R&B contemporâneo. O resultado é uma série de composições que juntam em tons graves a sujeira sedutora do trabalho com a terra e a limpeza impecavelmente ordenada dos ambientes aristocráticos, uma música que trafega na dor dos personagens enquanto aponta para os sentimentos mais elevados que quer acreditar que eles e, por tabela, nós, somos capazes de encarnar.
Essa é a sincopação que Schrader impõe para a sua narrativa, e que ele espera que abra o coração do espectador para a sua ideação do perdão. Mas vale notar que o cristianismo do cineasta, pelo menos como ele se articula aqui em Jardim dos Desejos, foge do cristianismo mainstream principalmente por se engajar com a realidade de que o divino só pode ser uma aspiração. Até porque Schrader vê com clareza absoluta os erros de seus personagens, e seus atores os expressam com garra, deixando angústias colossais e crueldades monstruosas que se escondem por trás da civilidade escaparem pelos olhos nos momentos em que elas se tornam inescondíveis, na nudez literal ou metafórica dos instantes em que sobra muito pouco para cobrir a pele e a alma marcadas por uma história cheia de equívocos.
O diretor entende fundamentalmente que, como humanos, podemos sempre pensar em perdoar, ou ao menos aspirar ao perdão. Mas, absolver, jamais. A absolvição está sempre além do nosso alcance, a remoção dos pecados permanece eternamente do outro lado do véu dessa vida difícil que levamos. Aqui, somos nós, e o que fazemos é nosso para carregar. E, apesar da premissa inflamatória de Jardim dos Desejos, no fim das contas entender essa responsabilidade e continuar acreditando em transformação, em amor, em cuidado, não é polêmica - é maturidade.