Em uma cena ainda no primeiro ato de Kate, a personagem-título, interpretada por Mary Elizabeth Winstead, corre pelo telhado de um prédio em Tóquio, seu movimento acompanhado de longe pela câmera, sua silhueta entrecortando o grande display de neon no edifício bem em frente ao dela. Parece um momento saído de Ghost in the Shell ou Aeon Flux - as animações, não os filmes live-action -, cercado pela sensibilidade brutamontes de um filme de ação B hollywoodiano dos anos 80 ou 90.
Esse é grande parte do charme da produção da Netflix, dirigida sem nenhuma sutileza por Cedric Nicolas-Troyan (O Caçador e a Rainha do Gelo). Desprovido de grandes ambições artísticas, Kate se sente à vontade para emprestar ideias visuais de fontes mais conceituadas e aproveitá-las para temperar aquela trama básica, familiar: uma assassina de aluguel traída busca vingança e, pelo caminho, encontra uma inesperada conexão humana e uma possibilidade de redenção.
O roteirista Umair Aleem, cujo único crédito anterior é o pouco visto thriller de ação Operação Resgate (2015), um dos filmes duvidosos que Bruce Willis anda fazendo para pagar as contas, entrega um trabalho de caracterização rudimentar, mas eficiente. Kate, a personagem, é tipicamente torturada pelos fantasmas de seu passado; mas Kate, o filme, não presta mais atenção a isso do que é preciso - o que importa, afinal, não é a profundidade do trauma da protagonista, mas o que ela faz (com revólveres, facas e quaisquer outras armas que achar pelo caminho) com ele.
Adicione aí uma pré-adolescente genuinamente carismática (a Ani da ótima Miku Patricia Martineau), que foge dos clichês irritantes de personagens jovens em filmes como esse, e um ensaio de discussão (rasa como um pires, mas moralmente alinhada) sobre o intrometimento de agentes ocidentais na cultura japonesa, e você tem a receita básica perfeita para uma sessão despretensiosa de fim de semana. E daí entram em cena as muitas e deliciosas ousadias às quais o filme se permite.
A cena de perseguição automotiva pelas ruas de Tóquio, criada com um CGI barato que lembra um videogame à la Burnout; a trilha sonora recheada de hits energéticos do j-pop e do j-rock; o trabalho impecável de maquiagem e figurino que retrata a condição deteriorante da heroína Kate durante o filme, amplificado por uma interpretação autoconsciente de Winstead; as pequenas brincadeiras conceituais da montagem, assinada por Sandra Montiel e Elísabet Ronaldsdóttir, que emprestam ritmo e humor a cenas de ação chocantemente brutais.
Kate se esforça muito para seduzir o espectador com sua visão debochada e específica do épico de ação descartável hollywoodiano. Difícil não embarcar nela e se apaixonar pelo filme.