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King's Man: A Origem escancara seu reacionarismo enquanto dispensa a diversão

Autoconsciente até aqui, franquia deixa de rir de si em filme de tom político desonesto

06.01.2022, às 19H05.
Atualizada em 07.01.2022, ÀS 15H49

Kingsman sempre foi uma franquia conservadora. Como fio condutor que atravessa igualmente Kingsman: Serviço Secreto (2014), Kingsman: O Círculo Dourado (2017) e agora King's Man: A Origem, há um mote saudosista ("as maneiras fazem o homem") que coloca o apreço ao cavalheirismo à moda antiga e aos bons costumes como elemento-chave na distinção entre heróis e vilões. É por isso que, para tornar-se um homem digno no filme original, Eggsy (Taron Egerton) tem não só que renegar suas delinquências como também seu estilo visual, de fala e toda sua identidade proletária em troca de ascender à aristocracia britânica. A franquia pega emprestado o velho colonialismo de 007 e adapta os quadrinhos de Mark Millar como um conto de fadas para o "homem de bem" do século XXI, oferecendo a ele a fantasia da luta contra o sistema sob a segurança de não mudar qualquer coisa que o tire de seu lugar de conforto; a do cavalheiro bem vestido que pode sodomizar quem escolher.

Esse sonho reacionário foi feito palatável nas telonas graças ao humor que parodia os historicamente conservadores filmes de espionagem dos anos 1960. O tradicionalismo do diretor Matthew Vaughn — expresso, nos longas de 2014 e de 2017, em subtextos que simplificam e ridicularizam pautas sociais progressistas como o ambientalismo e a legalização das drogas — passa sob o pretexto do absurdo, inserido em um universo onde cabeças explodem em fogos de artifício e Elton John distribui porrada de salto alto. Em suma, é tudo tão bobo, movido por um humor juvenil e apoiado em tramas megalomaníacas — emprestadas de uma era do cinema tão caricata — que fica fácil relevar o reacionarismo.

Só que essa fórmula não se repete em King’s Man: A Origem, um filme que tenta provar que a franquia pode ser mais do que só risadas e transgressões. Sem a jocosidade juvenil de seus predecessores, o derivado que funciona como prólogo é um estorvo desprovido de carisma que só não é absolutamente esquecível graças a um ou outro raro momento de leveza. O pior: sem o humor autoconsciente que tirava o foco do conservadorismo temático mal desenvolvido da franquia, o longa ainda soa abertamente político, mas se torna involuntariamente ridículo por convidar uma análise séria sem desconstruir o maniqueísmo imbecil que funciona apenas na sátira. O resultado é a sensação de que o famigerado “tio do Zap” decidiu, de um dia para o outro, se aventurar como professor de história, mas resolveu convencer disso justamente quem recebia diariamente seus memes cheios de fake news.

Situado na I Guerra Mundial, o longa reescreve parte dos motivos por trás do conflito para justificar o nascimento da tal organização privada de espionagem que conhecemos há dois filmes. Somos apresentados ao Duque de Oxford (o indicado ao Oscar Ralph Fiennes), nobre filantropo britânico que perdeu sua esposa em um assassinato realizado durante uma excursão à África colonizada, e por isso mede forças com seu filho Conrad (Harris Dickinson) para evitar que ele se envolva em assuntos militares. O que o jovem não sabe é que seu pai mantém às escondidas uma operação de espionagem clandestina junto a dois serviçais de confiança, vividos pelo ator indicado ao Oscar Djimon Hounsou e por Gemma Arterton. E é pelo prisma da tensão entre essas duas gerações de membros da alta sociedade britânica no século XX que somos convidados a aceitar que só a bondade e o senso de moral inabalável dessa casta social diferenciada pode salvar a humanidade dos conflitos armados gerados por... Precisamente ela mesma.

O revisionismo histórico de Vaughn em seu terceiro filme tem três funções claras: a primeira é retroceder dos excessos fantásticos de O Círculo Dourado de volta a uma trama que convide um investimento emocional mais sério do público, usando fatos para aterrar as tensões da narrativa; a segunda é permitir-se brincar com figuras históricas folclóricas, como o místico russo Rasputin (vivido no filme por Rhys Ifans, em uma de duas performances dignas de nota no filme), e usar esse artifício para revisitar quando necessária a identidade cômica previamente associada à franquia; e a terceira é abrir as portas para o desenvolvimento paralelo de franquias-irmãs que dobrem os rendimentos da 20th Century Studios. Só que nenhuma delas funciona plenamente.

O roteiro, assinado por Vaughn em parceria com Karl Gajdusek (substituindo a colaboradora nos dois filmes anteriores, Jane Goldman) não sabe exatamente quando se ater à realidade e quando distorcê-la, uma vez que se esforça o tempo todo para contextualizar um conflito histórico que nasceu do imperialismo sem lembrar ao público (sem sucesso) que a homenagem aos ideais desse mesmo imperialismo é a força motriz da franquia. Incapaz de problematizar plenamente a guerra que usa como grande força antagônica, o texto sacrifica a mesma verossimilhança que tomou emprestado dos livros de história, tornando-se farsa vazia. Não ajuda que os raros alívios cômicos eficientes, capazes de recontextualizar essa futilidade, sejam inseridos ali de forma truncada, provocando mais confusão do que respiro e ainda invocando um comparativo nada elogioso com os longas predecessores. Uma cena de luta com os personagens de Fiennes, Dickinson e Hounsou contra Rasputin — a única do longa que remete ao estilo enérgico de direção que consagrou Vaughn em Kick-Ass (2010), X-Men: Primeira Classe (2010) e no próprio Kingsman — é ótimo exemplo: é boa justamente por parecer descolada da produção. E os ganchos deixados para sequências (personificados em uma aparição sem cabimento do outrora badalado Aaron Taylor-Johnson) são do pior tipo; apresentados às pressas, sem desenvolvimento ou justificativa e denunciando a desatenção de quem estava preocupado em projetar ganhos futuros ao invés de fazer um bom filme.

Mas se, como filme, King’s Man: A Origem não faz muito sentido, como sintoma da derrocada artística de Vaughn é perfeitamente coeso: trata-se simultaneamente da produção mais conservadora e mais reacionária feita pelo cineasta. Conservadora porque, enquanto emprega um tom de assessoria de imprensa da Coroa Britânica para relativizar os crimes da Monarquia, ainda satiriza fatos históricos relevantes para se despolitizar; nem à esquerda, nem à direita, mas no centro, usando essas distorções para esvaziar, em tom de manifesto, o restante do espectro político — como se isso, por si só, não fosse tomar um lado. E reacionária porque até em seus defeitos o filme funciona como uma resposta debochada aos críticos da franquia, já que não só não corrige erros recorrentes como ainda os deixa mais evidentes. Em retrospecto, a misoginia da piada com sexo anal, do longa de 2014, ou da cena em que Pedro Pascal insere um rastreador na vagina de uma investigada, no de 2017, agora pode ser vista como é de fato: fruto de mau gosto e de má-fé.

Em tempo: especialmente no cinema anglófono, o conservadorismo nunca foi antagônico ao bom cinema — pense em clássicos como Os Brutos Também Amam (1953), Sindicato de Ladrões (1954), toda a filmografia do republicano Clint Eastwood e até mais recentemente os sanguíneos Harry Brown (2009), com Michael Caine, e Marcados para Morrer (2012), de David Ayer. King’s Man: A Origem patina não por causa da visão particular que Matthew Vaughn carrega sobre política, mas por causa da falta de visão; uma miopia imatura que o permitiu transformar uma franquia com potencial para unir gregos e troianos em nome de um entretenimento desmiolado em um veículo panfletário capaz de entediar gregos e revoltar troianos, oferecendo um megafone para alguém que só sabe balbuciar, e um palanque para ninguém dançar — e, consequentemente, ninguém que assiste se divertir.

Nota do Crítico
Ruim