Na esteira da cerimônia de abertura pomposa e sentimental do Festival de Cannes 2024, assistir a Le Deuxiéme Acte, o filme de abertura do evento, foi uma experiência curiosa. Após pouco mais de uma hora de discursos emocionados e declarações de amor ao cinema, esta grande forma de arte que nos une como seres humanos, a comédia carregada de metalinguagem do diretor francês Quentin Dupieux serviu como um contrapeso para toda a pretensão que é natural de um dos maiores eventos do calendário cinematográfico europeu. Isso porque Le Deuxiéme Acte não só se localiza em um espectro contrário ao do “Filme Importante™”, como estamos acostumados a definí-lo, mas também questiona a noção inflada de auto-importância da indústria cinematográfica como um todo.
Embora pareça partir de uma ideia simples (dupla de amigos parte para um restaurante encontrar a mulher que está apaixonada por um deles, mas que o rapaz em questão quer empurrar para os braços do outro), o roteiro também assinado por Dupieux logo se distorce em uma brincadeira autoconsciente em que os seus quatro atores principais interpretam versões de si mesmos. Ainda que nunca sejam chamados pelos seus próprios nomes, Louis Garrel (o galã de sexualidade duvidosa), Léa Seydoux (a estrela em constante conflito com a própria profissão), Vincent Lindon (o veterano que perdeu a credibilidade) e Raphäel Quenard (o novato carismático e impulsivo) encarnam personas que cutucam com um sorrisinho esgarçado as suas imagens públicas.
Parte importante dessa brincadeira, para Dupieux, está em questionar porque seus astros continuam fazendo o que fazem - atuar - diante de um mundo que não só se desdobra em múltiplas crises alheias ao cinema, como também encontra novas e diabólicas formas de distorcê-lo como forma de arte em favor de uma lógica corporativa. O questionamento às vezes é articulado de forma dolorosamente óbvia, mas Le Deuxiéme Acte nunca perde o senso de humor sobre si mesmo e sobre as pessoas que coloca na tela, e nunca perde a vontade de provocar e subverter as próprias provocações. Se no início o filme choca ao mergulhar nas águas turvas da “cultura do cancelamento”, por exemplo, é só para apresentar a banalidade diversa de seus personagens mais tarde, sem nenhuma vergonha.
Na melhor moda francesa, enquanto isso, o elenco se mostra destemido ao mergulhar nesses personagens duplos que dependem tanto do seu carisma quanto da sua flexibilidade dramática para funcionarem. Garrel, por exemplo, aos poucos transfigura sua imagem de galã carrancudo com uma performance muito mais atrevida, despida de qualquer fleuma, do que estamos acostumados a receber dele. Já Seydoux se delicia com o papel mais exigente do filme, borrando com habilidade as linhas entre as duas personagens que interpreta, como se buscando provar a autenticidade de suas emoções em tela ao nos fazer questionar quais delas são reais e quais são “atuadas” - e que diferença faz essa separação, no fim das contas. Quenard é um poço de carisma, a face sorridente mais genuína da comédia de Dupieux, e Lindon deita e rola em sua construção de veterano rabugento.
Por trás das câmeras, o que Dupieux tenta fazer é construir um filme simples, mas robusto em suas escolhas estéticas. Relacionando-se intimamente com a estrutura do seu texto, o cineasta monta uma série de longuíssimas tracking shots (tomadas com as câmera sobre trilhos, que acompanham a caminhada dos personagens) desenhadas para desafiar seus atores, é claro, mas também para chamar a atenção do espectador para o vai-e-vem dessas caminhadas - quem está indo para que lado, ao lado de quem, e falando sobre o quê? São essas e outras rimas visuais que constroem, em Le Deuxième Acte, um bom equilíbrio entre desprendimento retórico e paixão artística. A única desculpa para criar algo inútil, diria Oscar Wilde, é amá-la intensamente.
E daí entra em cena Manuel Guillot, o quinto elemento da brincadeira de Dupieux. Na pele de um ator desconhecido contratado para interpretar um garçom que treme de nervosismo diante do desafio de gravar uma cena com os astros do filme-dentro-do-filme, ele não só encara com gosto a piada mais física e “grosseira” do filme, transformando-a também na mais inesquecível, como também elabora talvez a única angústia real de Le Deuxième Acte. Porque, se o filme realmente tem algo a postular, é que o cinema não importa para nada - exceto quando importa, é claro, para a vida das pessoas envolvidas nele.
Como forma de subsistência, como atividade social, como construtor de comunidades, como ambiente para desenhar relações humanas, ele tem seu valor. E talvez seja hora de prestar mais atenção nele dessa forma, ao invés de se perder em sacralizações auto-indulgentes e inveteradas que só nos levam a machucar nossos semelhantes. Em última instância, não é uma má mensagem para começar um festival.