Cena de Les Femmes au Balcon (Reprodução)

Filmes

Crítica

Les Femmes au Balcon faz feminismo despudorado e cheio de energia referencial

Segundo filme de Noémie Merlant mostra controle, garra e conhecimento do meio

05.06.2024, às 14H22.

Les Femmes au Balcon faz um par de escolhas muito específicas que revelam, acima de quaisquer outras, o controle absoluto com o qual Noémie Merlant rege a sinfonia do caos que define seu segundo filme na direção. A primeira escolha é a de não mostrar o abuso de Ruby (Souheila Yacoub) pelas mãos de um vizinho misterioso (Lucas Bravo), muito embora este seja o evento definidor da trama, o incidente que empurra as três protagonistas na direção da liberação violenta de suas frustrações com a misoginia. A segunda escolha vem mais tarde, e é oposta: Merlant mantém a câmera ligada e focada no rosto de Élise (interpretada pela própria cineasta) enquanto ela sofre o que se define como estupro marital - ou seja, um incidente de abuso sexual perpetrado pelo próprio cônjuge da vítima.

Dentro da violência abundante e hiperestilizada de Les Femmes au Balcon, Merlant rejeita a ideia de acrescentar a um leque já bastante amplo de representações gráficas de abuso no cinema… mas, um pouco depois, a abraça. Por que? Difícil dizer com certeza sem falar com a diretora, mas na falta disso o filme fala por si próprio, e o que o filme parece dizer nesse caso é, basicamente, que “figurinha repetida não completa álbum”. Merlant sente que adicionar à recorrência midiática exaustiva de uma história como a de Ruby vale menos do que retratar uma reação possível (fantasiosa, mas possível) a ela, mas que o abuso sofrido por Élise - talvez por ser mais insidioso, localizado dentro da estrutura patriarcal do casamento - ainda é invisível, e que portanto merece (talvez precise) ser mostrado para que embarquemos na trajetória da personagem.

Concorde com ela ou não, é uma escolha definitiva, fincada em uma expressividade assertiva que perpassa todo o filme - Les Femmes au Balcon não é simples, mas Merlant mostra que tem mão firme para guiá-lo dentro de cada elemento audacioso que o compõe. Alguns exemplos: a direção de arte vibrante, assinada por Chloé Cambournac (O Pacto dos Lobos), coloca o filme dentro de uma tradição de comédias femininas definida pelo catálogo de Pedro Almodóvar; a câmera fluída da diretora de fotografia Evgenia Alexandrova (Sem Coração) lhe dá um dinamismo fragmentado que foge dos elementos mais teatrais do roteiro, principalmente com sua ambientação quase exclusiva em um único prédio de apartamentos; e o dispositivo narrativo de uma onda de calor atravessando a cidade de Marselha permite que Les Femmes au Balcon articule o seu liberalismo sensual sem recorrer ao sexo o tempo todo.

Os corpos estão aqui, e Merlant os filma sem nenhum pudor, suados, escapando pelas beiradas das roupinhas mínimas de um verão extremo, em exposição pública que causa frisson só por uma sexualização que é alheia a eles e aos sentimentos que expressam na tela. De certa forma, a nudez de Les Femmes au Balcon expande a nudez feminista-naturalista-utilitarista já ensaiada em Retrato de uma Jovem em Chamas, de Céline Sciamma, que tinha Merlant como uma de suas estrelas. Não à toa, a parceria se estende neste novo longa, uma vez que Sciamma ajudou sua musa a afiar o roteiro - e sua audácia criativa, seu impulso na direção de histórias rejeitadas pelo cânone cinematográfico, também estão aqui.

Nas mãos de Merlant, no entanto, Les Femmes au Balcon saiu muito menos econômico (alguns diriam, acadêmico) do que a média dos filmes da venerada artista francesa. Mas que fique claro: essa é uma virtude, não um revés. O filme de Merlant passeia por suas quase duas horas distribuindo piscadelas para os gêneros e as pulsões que poderiam o definir, mas que ele não deixa que definam. Animado por uma energia referencial que demonstra o conhecimento de sua autora sobre o meio em que está produzindo, Les Femmes au Balcon impressiona ainda mais por conseguir moldar esse conhecimento em um todo unicamente expressivo de sua história, de seu ponto de vista.

É um filme novo no sentido das narrativas que estamos acostumados a ver nos cinemas, que o definem como forma de arte inserida no contínuo cultural da sociedade; e um filme novo pela nova sensibilidade informada e desenvolta que representa. A promessa que ele faz para o futuro dessa artista é genial, mas o presente em que Les Femmes au Balcon existe é igualmente excitante.

Nota do Crítico
Ótimo