Quando os indicados ao Oscar 2021 forem anunciados na próxima segunda-feira, não estarão contemplados na premiação os episódios da antologia Small Axe, composta de cinco filmes que o diretor de Shame e 12 Anos de Escravidão, Steve McQueen, escreveu e dirigiu para a BBC em 2020. Desde que começaram a sair, porém, esses episódios são tratados como obras autônomas; Mangrove abriu o Festival de Londres e Lovers Rock foi escolhido o melhor filme do ano pela associação de críticos de Chicago.
No Brasil, o Globoplay já começou a soltar os episódios; Mangrove e Lovers Rock são o primeiro e o segundo, respectivamente. O que une as histórias independentes de Small Axe é um recorte histórico, sobre imigrantes negros na Inglaterra entre 1960 e 1980, lidando com situações de opressão (o título se refere a uma canção de Bob Marley que ecoa um provérbio jamaicano, que diz que o pequeno machado é capaz de cortar as maiores árvores). A figura de um cavaleiro troiano que aparece no título da antologia é bastante familiar para os fãs de ska, reggae e dub: é o logotipo da Trojan, a mais famosa gravadora de Londres dedicada à música jamaicana.
Em Lovers Rock, mais do que nos outros episódios, a música assume posição de protagonismo. A trama acompanha um grupo de pessoas, algumas delas conhecidas entre si, durante uma noite de discotecagem numa casa, num bairro miscigenado de West London, desde os preparativos da festa até a manhã seguinte. A seleção musical, que vai da balada de Louisa Mark (o subgênero jamaicano pra dançar coladinho levou na época o nome “lovers rock”) ao dub de King Tubby, deve passar no crivo de quem exige fidelidade, já que são em sua maioria sucessos dos anos 1970 que fariam sentido numa festa de 1980.
O principal, porém, é que a música serve como vinheta para anunciar viradas na trama, e nas escolhas de canção McQueen também estabelece conflitos, humores da noite, dinâmicas de casais. É assim que a trama se desenrola, e de repente o espectador se descobre envolvido numa reverberação de tensões, dramas e catarses, que começa no particular (a situação dos jamaicanos em Londres numa época de desemprego e xenofobia crescentes) para chegar ao universal. Na batida do dub e na câmera de McQueen, que escolhe planos longos com frequência mas não perde a elegância mesmo no meio da rodinha muvucada, o filme nos envelopa com seu ritual de dança.
Numa época em que se exige injustamente do cinema uma função sociopolítica, como um pré-requisito pedagógico, que privilegia roteiros-palestras às narrativas de empatia e imersão, é um alívio tremendo ver um filme como Lovers Rock, cujo potencial discursivo não vem enunciado e sublinhado logo de cara no texto. Se há uma força transformadora em curso aqui, ela vem muito mais da carga sonora e cromática, do acúmulo sensorial, do testemunho dos gestos.
Ao contrário do que acontecia com frequência em seus filmes no passado, McQueen não martela temas pra ninguém. Tudo está inscrito na forma como personagens se comportam, como interagem, como extravasam. A música serve como um instrumento de catarse que o filme compartilha com o espectador (recomenda-se assistir a Lovers Rock em volume alto) mas essas boas vibes coletivas não excluem a carga dramática que é viver e festejar em segredo, como válvula de escape para as tristezas da vida. No filme, as duas coisas não se anulam, a catarse e a introspecção, elas se complementam e uma potencializa a outra.
Em festivais de cinema, é comum delimitar os médias-metragens entre os filmes que têm até 60 ou 70 minutos de duração. Com pouco mais de uma hora, Lovers Rock pode ser tratado portanto como um episódio de antologia, um média-metragem ou um longa autônomo. Diante do filme, a nomenclatura não importa muito, e isso vai ficando mais claro à medida em que Lovers Rock chega a mais pessoas com a força da sua narrativa simples e efetiva.