Filmes

Crítica

Luca prova que existe beleza também em uma aventura engraçada e descomplicada

Apostando no humor físico e na nostalgia de uma memória da infância, a Pixar celebra a curiosidade e a aceitação em uma história cheia de cores

18.06.2021, às 18H33.
Atualizada em 19.06.2021, ÀS 14H22

Se Ariel fosse um monstro marinho que vira humano num encanto automático, como o pequeno Luca, o Rei Tritão teria visto a filha partir para a superfície muito antes da adolescência. O obstáculo para a curiosidade da sereia sempre foi anatômico -- ela não tinha pernas, apenas uma cauda --, e não os alertas de qualquer figura de autoridade. Por isso, para ela, fazer um acordo com alguém tão controverso e assustador quanto a Úrsula foi um pouco aflitivo e nada mais. Sua cabeça já vivia acima das ondas. Era apenas uma questão de como chegar lá.

Por mais curioso que seja também o novo herói da Pixar, Luca se assemelha mais com o Linguado do que propriamente com a princesa. Há, sim, um interesse por todo o desconhecido que envolve a vida das criaturas sem guelras, mas seu medo é maior. Como o sidekick de Ariel, o menino-monstro é apenas uma criança, e se a mãe fala que os outros são bárbaros, ele não tem por que não acreditar. Viver assistindo às sombras dos barcos e tentando dar significado para os objetos que caem lá de cima é o que ele está fadado a fazer, não há escapatória. Certo?

Essa afirmação seria verdadeira se ele não tivesse encontrado no seu caminho alguém tão corajoso quanto Ariel. Mais até, considerando que seu novo melhor amigo, Alberto, vive suas aventuras sem medir as consequências. É o jovem monstro que apresenta a superfície ao protagonista e o estimula, com suas histórias à la Sabidão, a se abrir para o mundo. Mas, embora as vidas de Alberto e Luca espelhem a inocência curiosa e a amizade leal de A Pequena Sereia, Luca o faz num escopo menor: numa cidadezinha da Riviera Italiana. Não há vilão que se agiganta e vira uma espécie de Kraken, nem reino algum em perigo. É tudo mais contido. Porque, no fundo, aos olhos de uma criança, descobrir o mundo e a si mesma dispensa hipérboles. É uma experiência gigante por si só.

O diretor italiano Enrico Casarosa nunca escondeu que Luca tinha algo de autobiográfico, mas mesmo o mais desavisado dos espectadores pode sentir a nostalgia transbordando da tela. As cores, os figurinos, o sonho da Vespa e até a concentração da trama na praça da cidade dão a sensação de se estar diante de uma memória de verão -- uma memória que se pode revisitar não com a crítica de um adulto, mas com aquele mesmo encanto infantil de quem o está vivendo pela primeira vez.

Nesse terreno, tão mágico quanto um conto de fadas, Luca rende o espectador que busca uma reflexão metafísica e lembra-o que há beleza também em uma mensagem tão simples quanto celebrar a sensação de sentir-se maravilhado com um novo aprendizado, de enfrentar um desafio apesar do medo e, sobretudo, de descobrir-se pertencente. E é aí que Luca se distancia do clássico da Walt Disney Animation: porque este sentimento não se concretiza em um amor romântico, mas sim na amizade quase simbiótica que o protagonista e seu companheiro de aventuras desenvolvem -- e potencializada com a adição da destemida e esperta Giulia no grupo dos deslocados, quando o duo finalmente chega a Portorosso.

Existe, sim, um tema mais profundo por trás dessa aventura colorida: a busca de Luca e Alberto por aceitação em terra firma é uma bela metáfora para descrever qualquer situação em que o espectador se sentiu julgado por ser simplesmente quem é. No entanto, dessa vez, a Pixar não criou nenhuma engrenagem intrincada para construir essa moral empática. Bastou tornar a história dessa dupla uma aventura engraçada, e há de se reconhecer que há algo de genial em resgatar essa despretensão. O medo de serem descobertos, por exemplo, anda lado a lado com cenas que privilegiam o humor físico e faz com que o estilo de animação, inspirado na aquarela, salte aos olhos. Até o ridículo de ter um vilão velho demais para se preocupar com uma competição infantil tem seu charme.

Talvez o grande mérito de Luca seja justamente se permitir ser infantil e falar de igual para igual com as crianças. E, olha, nem por isso o filme é menos válido para os adultos. Para além das referências ao cinema italiano, a verdade é que esse olhar menos cínico e mais encantador para a vida parece um abraço e, na atual conjectura, a gente bem que está precisando.

Nota do Crítico
Ótimo