Cena de Mães Paralelas, de Pedro Almodóvar (Divulgação)

Filmes

Crítica

Almodóvar liga passado e futuro com o fio do melodrama em Mães Paralelas

Mestre espanhol reflete sobre como nossas histórias se tornam, bom… História

10.02.2022, às 14H23.

Artistas são criaturas propensas à repetição, e pudera: arte é algo que costuma nascer de um lugar muito íntimo, por sua própria natureza imutável, do indivíduo. Um artista é só uma pessoa, e uma pessoa só pode produzir um tipo de arte - ou, no máximo, vários tipos de arte marcados pelas mesmas idiossincrasias. A problemática surge quando percebemos, com o passar dos anos e das décadas, que, quando um artista faz as mesmas coisas de novo, e de novo, e de novo, é inevitável que ele se torne uma paródia de si mesmo. Poucos artistas têm a elegância de aceitar esse destino e tentar fazer algo legítimo com ele.

Pedro Almodóvar, nesse e em tantos outros sentidos, é a exceção a essa regra. Seu novo filme, Mães Paralelas, é na verdade um grande pastiche de Almodóvar-ices, desde a forma como centraliza as mulheres e suas neuroses até os empréstimos generosos que faz da linguagem narrativa do folhetim, passando pela fotografia (José Luis Alcaine) e direção de arte (Antxón Gómez) que destacam o verde e o vermelho vívidos dos ambientes, emprestando um senso estético teatral a um mundo doméstico que, nas mãos de tantos outros diretores, seria simplesmente prosaico em sua busca pelo “realismo”.

Mães Paralelas também é generoso, mas paciente, na forma como distribui suas reviravoltas: não há uma grande revelação final, um grande conflito caótico, mas uma sucessão dramática deliberada, e uma vontade bem-vinda de respirar e analisar as consequências de cada momento para os personagens. Dificilmente alguma dessas viradas de trama, aliás, vai realmente surpreender o espectador, especialmente o mais versado em clichês novelescos. Almodóvar sabe que está caminhando por uma estrada familiar aqui, mas sabe também que a domina e que pode usá-la para dizer o que quiser.

Neste caso, ele escolheu contar a história de Janis (Penélope Cruz) e Ana (Milena Smit), que se encontram pela primeira vez no hospital, quando estão prestes a dar à luz. A jornada delas se desenvolve durante o filme em uma dança de contrastes e comunalidades: ambas são mães solteiras, por exemplo, e nenhuma das duas planejou a gravidez, mas Janis conta com uma carreira sólida que lhe dá alguma segurança financeira, enquanto a jovem Ana não tem nem mesmo o apoio dos pais. Paralelamente, Janis luta contra a burocracia governamental para tentar realizar uma escavação em seu povoado de origem, que poderia recuperar os restos mortais de seu bisavô, morto pelo franquismo.

Dessa subtrama é que nascem, ou ao menos é nela que florescem, as entrelinhas mais fascinantes de Mães Paralelas. Almodóvar analisa o passado ditatorial sangrento da Espanha e o conecta diretamente com o drama íntimo que se desenvolve entre Janis e Ana - não é a toa, por exemplo, que um dos momentos mais importantes da relação entre as duas aconteça diante de uma parede decorada com as fotos de todas as descendentes de Janis, mulheres que escolheram ou foram obrigadas a criar outras mulheres sozinhas. E, ao organizar a ação em torno da maternidade de suas protagonistas, o filme ainda sugere como esse passado será carregado para o futuro.

Como já havia demonstrado no curta A Voz Humana, o cineasta espanhol está mais do que disposto a sublinhar a artificialidade dos mundos que ama filmar, a desconstruir o que há de verdadeiro em suas emoções encenadas. Mães Paralelas é brilhante ao usar a linguagem do melodrama, tão cara a Almodóvar, para comunicar o que as histórias que se desenvolvem todos os dias dentro de nossas casas, de nossas relações, têm em comum com a História (com H maiúsculo) que nos precede, e como elas ajudam a construir a História do que ainda está por vir.

À parte o abraço orquestral da belíssima trilha sonora de Alberto Iglesias, ou a performance intensa de Penélope Cruz (ambas merecidamente indicadas ao Oscar), Mães Paralelas vibra com o gênio de um artista que encontrou o valor na repetição, no exagero de suas próprias obsessões. Almodóvar ainda tem o que dizer, e escutá-lo ainda é um absoluto prazer.

Nota do Crítico
Ótimo