Durante a divulgação de Maligno, o diretor James Wan fez o básico e esperado: disse em entrevista que o filme é feito para os fãs de horror, “os fãs do horror mais puro que têm me apoiado”, e que talvez ele não tivesse outra chance igual de realizar um filme tão maluco e inconsequente. O primeiro de muitos choques que Maligno provoca é que Wan não está só jogando a isca para sua torcida. Este seu novo trabalho, realizado no intervalo entre um Aquaman e outro, passeia sem o menor pudor por climas, situações e tropos consagrados em 100 anos de cinema de horror.
Nesta primeira parceria de Wan com a roteirista Akela Cooper (que assina o roteiro sozinha com base num argumento de Wan, Cooper e Ingrid Bisu), acompanhamos Madison Mitchell (Annabelle Wallis) a partir do momento em que seu casamento se revela ser uma rotina de violência doméstica. Um vulto esguio cresce nas sombras da casa como uma assombração de horror japonês dos anos 2000 para dar conta dessa questão; recém-enviuvada, agora Madison assiste enquanto as mortes continuam a acontecer, e de vítima ela então se torna suspeita dos crimes.
De início, o j-horror é uma inspiração perceptível, mas há outras. O filme gera interesse, logo de cara, porque parece estar combinando numa trucagem narrativa um slasher movie (o filme de maníaco homicida do fim dos anos 1970, começo dos 1980) com os thrillers sobrenaturais dos quais Wan tomou parte com seus filmes de possessão na última década. Essa combinação é o que tenta prender a atenção do espectador no terço inicial, porque ficamos tentando desvendar se no final Maligno se decidirá pelo slasher (com o peso da evidência física, dos assassinos corpulentos, muito reais) ou pelo terror de espíritos (com o caráter elusivo, imaterial dos espectros, que todo filme desse tipo implica).
Ao invés de escolher entre um estilo e outro, de repente Maligno passa a incorporar outras referências, e quando menos percebe o espectador está envolvido num jogo de encenação antinaturalista feita para potencializar os efeitos do terror. Isso está na patente canastrice do elenco desconhecido (a detetive com seu pirulito, a ponta desconcertante de Zoë Bell como a detenta caminhoneira, o terno super bem cortado do detetive galã, a auxiliar forense que parece saída diretamente de Pânico), está no desenho de interiores (a crise imobiliária está aí mas parece que todo espaço coberto em Seattle é um salão gótico enorme, a começar pela delegacia), está na sucessão de grandes-angulares que deformam a vista e nos travelings de drone que aproveitam a chuva típica da cidade para instalar um clima de estranhamento deslocado da realidade.
Ou seja, ao invés de jogar com as regras dadas (preservar um naturalismo e uma lógica, escolher se o filme é de maníaco ou é de fantasma), a partir da sua metade Maligno desarma toda essa expectativa pronta e passa a abraçar sem medo um registro maneirista, ditado pelo efeito. Daquele protocolo que esperamos, só sobra a clássica investigação expositiva que no terceiro ato revelará a verdade traumática e pretérita sobre a identidade do vilão. De resto, Maligno é um festival de válvulas de escape estilizadas que vão do expressionismo (o jogo de sombras na fotografia) ao giallo (a forma como a música sintetizada dita uma cadência de morte).
E aquela pergunta inicial - nas aflições de Madison, será que estamos diante de um filme do “real” ou um filme do “imaginado”? - deixa de fazer sentido, porque nas muitas soluções antinaturalistas de Wan as duas coisas passam a significar uma só: o artificial. Aqui cabe a clássica definição do expressionismo no cinema, em que a arquitetura do real se presta a expressar um horror sugerido, imaginado. Real e projetado se unem, enfim - mesmo porque é impossível assumir como “reais” esses personagens e essas situações que desafiam o bom gosto e o bom senso. É possível dizer que este Maligno pratica um exercício de cinefilia a quente - na base da matéria mais “real” possível, o sangue, a evidência incontestável do sangue - que se justifica acima de qualquer promessa de naturalismo, e a anula.
Quando diz que seu filme busca o “horror puro”, James Wan provavelmente está se referindo ao cinema que nomes como Wes Craven, David Cronenberg, Dario Argento, John Carpenter e Clive Barker fizeram há 40 e tantos anos. Não por acaso, é o período em que a linguagem do cinema - esgotada depois de perceber que todas as suas regras já estavam definidas e manjadas - se voltou para um maneirismo que soubesse deslocar, reciclar e reincorporar as regras do cinema clássico num registro autorreferente, frequentemente irônico. O que James Wan faz em Maligno é filtrar novamente essas referências, com naturalidade e autoridade - como se estivesse pleiteando, a essa altura da carreira, um lugar ao lado desses cineastas maiores, dentro do jogo deles.