A história de Maria Schneider é uma das mais notórias dos bastidores do último meio século de cinema - mas, também, uma das mais difusas. A atriz, escalada aos 19 anos por Bernardo Bertolucci para estrelar o drama erótico O Último Tango em Paris (1972) ao lado de Marlon Brando, ganhou fama dúbia após o lançamento do filme pelo teor sexual da sua personagem, e foi o centro de uma disputa de narrativas que durou décadas sobre a cena de estupro pela qual o longa é mais conhecido até hoje. O que estava, ou não estava, no roteiro? O que Brando e Bertolucci sabiam, e quão simulada foi a violação de Schneider, eternizada na tela pelo cineasta italiano? Até onde o cinema pode ir, como procedimento de arte no dia a dia do set e como produto cultural, uma vez que é lançado no mundo?
É uma história simbólica de várias coisas: do cinema de autor descontrolado da Hollywood da sua época, do poder representativo desta forma de arte e sua responsabilidade ao lidar com a violência (ainda mais, a sexual), do tratamento e posicionamento do corpo da mulher na narrativa cultural que designamos a ele. Brando morreu em 2004, Schneider em 2011, Bertolucci em 2018, e o #MeToo aconteceu entre essas duas últimas datas, abrindo os olhos do mundo para o segredo aberto do abuso sexual na indústria do cinema. Em outras palavras, a história da atriz, e de O Último Tango em Paris, nunca realmente saiu do imaginário popular - mas também sempre se plantou firmemente ali, num encontro de narrativas que borrava os fatos da história.
É nesse cenário que chega Maria, menos como cinebiografia de Schneider, e mais como ferramenta de esclarecimento, encarregado da responsabilidade de nos mostrar o que aconteceu, pelos olhos de a quem aconteceu, em uma perspectiva contemporânea. Para o seu enorme crédito, a diretora e corroteirista Jessica Palud (o texto também é assinado por Laurette Polmanss) faz exatamente isso, e o faz de maneira muito consciente da seriedade da missão. Especialmente quando adentra nos bastidores de Tango, mas na verdade durante toda a sua 1h40 de metragem, Maria mantém um controle de tom impressionante, uma renúncia ao melodramático que, ainda assim, não o transforma em um filme inexpressivo - é, ao invés disso, um filme que expressa com muita cautela, e muita exatidão.
Há o mergulho nas origens familiares de Schneider, interpretada por Anamaria Vartolomei, de seu ressentimento em relação à mãe agressiva ao seu reencontro com o pai astro de cinema, Daniel Gélin (Yvan Attal), e como ambas as coisas a impulsionaram na direção da indústria cinematográfica. Há a construção da cordialidade e da troca profissional com Brando (Matt Dillon, em uma imitação no ponto), antes da filmagem da fatídica cena de violação, dosando o carisma das interações entre eles para comunicar ao espectador a confiança que foi quebrada, mas não seduzi-lo a um senso falso de segurança. Há a espiral que se segue ao lançamento do filme, balizada pelos sistemas midiáticos e industriais que represaram a verdade de Schneider, pelo recurso às drogas que definiria sua vida dali em diante, e pelo encontro difícil com um novo amor que representa a possibilidade de salvação.
Por trás das câmeras, Palud se aproxima de tudo isso com o que parece ser uma concentração sobrenatural. O seu Maria segue os passos da protagonista com um olho afiado para as negociações que ela precisou fazer com as realidades múltiplas do seu passado, seja o familiar ou o cinematográfico, e como a sua recuperação - de fato, sua mera existência como sobrevivente de abuso - foi impossibilitada por um mundo que não tinha nem o vocabulário para ajudá-la e apoiá-la, nem a empatia necessária para buscar construí-lo. Palud não cede nem a uma ilustração visual desse sufocamento lento pelo qual a atriz passou, preferindo a neutralidade chapada, cuidadosamente pensada, que elege para o filme desde o início.
O resultado é que Maria pode não impressionar muito como cinema, especialmente dentro do contexto em que foi exibido, em um Festival de Cannes tão dedicado a visões estéticas e narrativas radicais, a exercícios de gênero complexos e discursos explosivos. Mas é um filme necessário, de limpeza histórica, que existe dentro de linhas demarcadas porque não quer deixar margem para a dúvida - eis aqui a história de Maria Schneider, e como falhamos com ela. Não dá para ficar mais concreto, e mais provocativo, do que isso.