A harmonia racial é a uma das maiores mentiras com que tentaram nos envolver. Um estratagema para buscar aplacar o ódio que os milhões de afrobrasileiros carregam pelos 388 anos de escravidão a que fomos submetidos. É também a face mais doce, quase um slogan, de uma intensa política de branqueamento da população brasileira.
Uma política que foi extensão máxima de uma situação que não queriam suportar: a de ter de conviver com negros então libertos. Talvez a solução fosse esperar que desaparecessem à míngua, lhes negando qualquer projeto de inserção social e econômica, em paralelo com um incentivo à imigração europeia por parte das elites econômicas e do próprio Estado, defendendo, ao mesmo tempo, a ideia de que os negros representavam um fator de atraso para a nação brasileira e, portanto, não era interessante promover sua integração e sua ascensão.
A solução número dois: a política de branqueamento, ideologia amplamente aceita no Brasil entre 1889 e 1914, como a resposta para o "excesso de negros". Uma política pela qual se acreditava que a raça negra iria desaparecer totalmente, dentro de várias gerações de miscigenação entre brancos e negros.
E se nada disso funcionasse, como não funcionou? Ora, uma política de "devolução" dos negros aos países africanos, como se objetos fôssemos. Isto é Medida Provisória, estreia de Lázaro Ramos na direção de longa metragem.
O primeiro filme de Lázaro — que tem roteiro baseado no sucesso teatral brasileiro Namíbia, Não!, de Aldri Anunciação — nos mostra um pesadelo assustador que joga em uma determinação governamental de "devolução" de afrobrasileiros (as pessoas de melanina acentuada) toda a ojeriza que um país racista têm sobre a população negra. Uma ojeriza nunca reconhecida, como bem resumido em uma fala de Isabel, personagem de Adriana Esteves: "Racista jamais! Só estou fazendo o meu trabalho".
"Como é que a gente não viu isso? Como é que a gente deixou chegar nesse ponto? Como é que a gente riu disso?". Estas palavras são do personagem André, interpretado por Seu Jorge, mas poderiam ser de qualquer um de nós, hoje, no Brasil. E este constante espelho, para um fato que não é difícil imaginar se concretizando, talvez seja um dos aspectos mais interessantes na obra de Lázaro.
Não é preciso que toda obra seja reflexão clara do momento em que é concebida — embora seja sempre resultado do seu tempo. Porém, quando o é, a tal ponto que nos traz o amargor de uma realidade bem possível, desvenda as camadas propostas por um cineasta extremamente lúcido. Um cineasta que faz este malabarismo equilibrando humor, drama e thriller com a habilidade de um veterano.
Como não pensar que uma obra é espelho da sua contemporaneidade, quando os fatos que a cercam não se reduzem à sua narrativa ficcional? Há mensagens claras aqui, que incomodam uma realidade estabelecida que não quer admitir sua ojeriza, que quer continuar a emular uma harmonia inexistente. E esta intenção sempre escamoteada, vai mostrando seus tentáculos por meio do domínio de processos, como o que atrasou a possibilidade de que o víssemos antes, muito antes, uma vez que a Ancine atrasou seu lançamento em mais de um ano, sem nunca justificar tal morosidade.
Afinal, "será que a gente nota quando a história está acontecendo?", pergunta o personagem Antônio, papel de Alfred Enoch, logo nos minutos iniciais do filme. O ator, conhecido tanto pela série de Viola Davis, How to Get Away With Murder, mas, principalmente, como o Dean Thomas de Harry Potter, está entregue ao personagem, o "último negro do Brasil". E respondendo à pergunta de Antônio, a história já nos mostrou, e está nos mostrando que, na maioria das vezes, não notamos.
O roteiro do filme foi escrito originalmente em 2011, após Lázaro se apaixonar pelo texto e o adaptar para o cinema em 2015, sendo ele filmado em 2019 em diversas locações na cidade do Rio de Janeiro. E a decisão de concentrar as filmagens na capital carioca traz para este Brasil distópico construído por Lázaro Ramos os adequados aspectos de uma modernidade não completa: em um instante estamos sobrevoando o moderno VLT em uma região central feita de concreto e planícies vazias; em outro, vemos os negros se reunindo nos Afrobunkers, os quilombos dos tempos de então, por cantos e vielas repletos de grafites, na comunidade de remanescentes de Quilombos da Pedra do Sal, Santo Cristo, e outros locais habitados por escravizados alforriados e que de 1850 até 1920 foram conhecidos por Pequena África.
Estes são os cenários principais que se constroem a partir do momento em que a Medida é promulgada. Porque há duas consequências após isso: a primeira, dos negros concordando em voltar para "seus países de origem". Mas como saber que países são estes, se nossa história é totalmente invisível? "Ah, mande-os pra África!" Mas a África é um continente. Para onde "devolver" todos estes negros? A resposta pode ser, e praticamente é, para qualquer lugar "longe daqui".
Mas há a segunda consequência, ou força: o dos negros que resistirão bravamente, querendo se manter por insistência e inteligência no país em que nasceram.
Neste último grupo, além de Enoch, o advogado idealista com um futuro que até então se desenhava lindo com sua companheira Capitu, a médica interpretada por Taís Araújo, há também o André de Seu Jorge. E há aquela massa que terá que resistir nos quase-subterrâneos: um elenco gigante de personagens com as motivações nobres dos injustiçados que se quer ver morrer à míngua, formado por uma grande quantidade de artistas bem conhecidos: Tia Má, Emicida, Flávio Bauraqui, Luis Miranda, Jessica Ellen, Indira Nascimento, entre outros.
Não obstante suas entregas cênicas e o sentimento claro de insurgentes que conseguem expressar nos momentos em que a tela é deles, o que impressiona, realmente, é a interpretação de Taís Araújo. A atriz imprime, tal qual Alfred Enoch, a profundidade emocional que o filme precisa. Talvez haja momentos em que a irresistível vontade de trazer textos profundos em voice off, narrando os sentimentos que se exacerbam quase ao fim do filme, flertem com um sentimentalismo algo derramado. Mas isso é muito pouco em uma trama que se desenrola intensa, mantendo uma qualidade inequívoca nas suas pouco mais de 1h40min de duração.
Troféu de Melhor Roteiro no Indie Memphis Film Fest, considerado o "melhor filme brasileiro desde Cidade de Deus" no festival Pan African Film, além de sucesso da crítica especializada após exibição no badalado SXSW, entre outros festivais internacionais, Medida Provisória é Lázaro Ramos estreando em um longa com total domínio narrativo, alternando com maestria e sutileza diferentes gêneros, em uma obra que tem tanto de técnica quanto de paixão. Nas mãos de um cineasta negro menos habilidoso, um filme com tal premissa poderia rapidamente se converter em pura ferramenta de militância. Mas tratado por um artista experiente em construir narrativas em várias plataformas — como ator finalista do Emmy, apresentador e escritor premiado, além de diretor —, o que temos é um filme extermamente consciente de sua mensagem, mas que é entretenimento que nunca perde a tensão e a emoção genuinamente cinematográficas de vista.
Medida Provisória é filme já histórico: reúne, à frente e atrás das câmeras, o maior número de profissionais negros na trajetória do cinema brasileiro. Não obstante, utiliza estes fatos, que são propícios para criar manchetes e buzz, para ir fundo em questionamentos, como "o que significa ser brasileiro? Quem é preto? Quem é branco?". Afinal, é óbvio que, após séculos, as linhas são tênues demais: pessoas negras podem parecer brancas, pessoas brancas podem parecer negras e há milhões de pessoas miscigenadas, cujas identidades não são facilmente definidas por uma segmentação racial tradicional.
Adotando literalmente a frase "Volte para onde você veio", este filme vai irritar quem precisa ser irritado e sensibilizar aqueles que vão ver como sua premissa é fundamentada em verdades inquestionáveis e, mesmo que projetando um "futuro próximo", tudo soe tão orgânico e tão reconhecível.
O que talvez seja a nota fundamental a respeito da estreia de Lázaro Ramos em um longa metragem, é: não é surpreendente que este artista consiga entregar uma obra com tanta excelência. Ele está fazendo isso muito bem, há muito tempo. Dominando espaços através de seu talento multifacetado, sempre levantando questionamentos, debatendo sobre discriminação, igualdade social, construção de estereótipos. Por meio de uma ferramenta que nos é tão cara no dia de hoje — e sempre: a arte.
É cada vez mais difícil encontrar um artista brasileiro com uma limpidez e consciência tão claras sobre quem ele é, qual a sua trajetória, em que modelo está inserido e quais formas lhe são possíveis de empregar para ajudar a revelar uma realidade que está longe de ser a ideal — para ele e para os outros negros à sua volta. E é preciso falar tanto do realizador deste filme, Lázaro Ramos, porque Medida Provisória é, definitivamente, obra de autor. Em uma época em que franquias e filmes sob encomenda, desfeitos de quaisquer laços entre obra e realizador, têm ditado a cena cultura em que vivemos, é inspirador saber que há, ainda, arte sendo feita sem medo de carregar autoria e ponto de vista. E há ponto de vista, há opinião inequívoca e há excelência técnica, porque conduzido por alguém a quem não falta experiência. Só no cinema, são vinte e quatro anos, desempenhando papéis em alguns dos mais importantes filmes da nossa cinebiografia nacional, como Madame Satã, Carandiru, O Homem que Copiava, Cidade Baixa, Ó Paí, Ó, Saneamento Básico, o Filme, entre dezenas de outros tantos.
Com uma premissa tão simples quanto dolorosamente absurda — porque é, sim, assustador pensar que há verdade na intolerância tratada nesta obra — em Medida Provisória, Lázaro Ramos "só" precisa se concentrar em construir o melhor na lógica interna da sua narrativa, tirar o máximo do seu elenco e se deleitar com suas possibilidades imagéticas. E ele consegue isso. Por que sabe que, apesar da experiência na direção de programas e especiais televisivos, cinema é outra coisa. E esta outra coisa — provavelmente muito mais resultado do ator sensível que é, e, portanto, generoso com os atores que, agora, passa a dirigir — Lázaro Ramos felizmente também domina, e muito bem.