Não se deixe enganar pelos traços arredondados, cores vibrantes e personagens antropomórficos de Meu Amigo Robô, muito menos pelas críticas que têm saudado o filme como uma celebração de amizade para toda a família. A obra do cineasta espanhol Pablo Berger se fantasia tão bem de fofurinha animada independente que até convenceu os votantes da Academia do Oscar a incluí-la na concorrida categoria de melhor longa de animação em 2024. Mas que fique avisado: por baixo dessa superfície aconchegante existe um filme que faz cada uma de suas escolhas estéticas e narrativas visando construir uma jornada de separação que só se qualifica como agridoce porque concede que, apesar de tudo o que acontece com seus protagonistas, a vida continua.
E não é que Meu Amigo Robô seja triste pelo prazer de ser triste, como às vezes acontece com histórias “fofas” que buscam subverter a expectativa do público. É que Berger, adaptando a graphic novel de Sara Varon, sabe exatamente como potencializar a jornada expansiva - em tempo e espaço - de Cachorro e Robô para minar o que ela tem de mais genuíno a dizer sobre os encontros e desencontros de almas que se enfileiram durante nossas vidas. É de quebrar o coração ver os dois protagonistas engatarem uma relação de óbvio afeto (defini-la como amizade seria tão arbitrário quanto defini-la como namoro) e se verem separados pelas circunstâncias, mas não há cinismo ou amargura em Meu Amigo Robô, só clareza de visão.
É essa clareza que guia o filme a reconstruir a Nova York dos anos 1980 de sua própria maneira encantadora, inegavelmente vívida mesmo que a principal voz criativa do projeto nunca tenha de fato… bom, vivido aquela realidade. Funciona, de certa forma, justamente porque essa é uma NY de sonho, povoada por figuras e definida por atividades consagradas na cultura pop - patinar no Central Park ao som de “September”, do Earth, Wind & Fire, tomar sorvete e curtir a praia em Coney Island, etc e tal. Meu Amigo Robô se apoia nessas referências culturais quase universais para estabelecer a credibilidade e a fluidez de sua narrativa, especialmente diante de outra escolha estética fundamental: a de não utilizar nenhum diálogo.
De fato, é quase enfurecedor perceber o comprometimento absoluto de Meu Amigo Robô com essa renúncia à fala durante pouco mais de 1h40 de filme. A cada novo passo que dá com a trama, Berger parece esbarrar com uma chance de articulação que só parece possível caso o filme quebre a própria regra e faça um de seus personagens dizer uma frase, uma palavra que seja, algo além de um grunhido ou guincho levemente expressivo. Em cada uma dessas oportunidades, no entanto, o cineasta se recusa a ceder à tentação, elegendo repetidamente fazer desvios narrativos, introduzir subtramas, lançar mão de recursos líricos inesperados e brincadeiras com a forma cinematográfica… qualquer coisa, enfim, que permita que o longa fuja da fala.
De forma milagrosa, isso só faz de Meu Amigo Robô um filme mais eloquente, ao invés de menos - a sensação é que, ao recusar oportunidades expressivas que viriam com o diálogo, Berger abre a porta para outras que realçam as sensações fundamentais que ele quer levantar com a história. A recusa às palavras, por exemplo, faz da solidão dos personagens principais uma realidade mais palpável, assim como a passagem do tempo que “cura” as feridas (ou, ao menos, ameniza a dor) da separação. Em silêncio, Cachorro e Robô caminham por um mundo que borbulha em atividade, mas não se comunica com eles, dificultando suas buscas incessantes por algum ato de gentileza que crie um espaço pacífico onde possam viver.
Em sua inflexível teimosia artística, enfim, Berger acaba por reafirmar a primazia do cinema como plataforma visual para contar histórias humanas. Esta é, afinal, uma obra que puxa suas referências mais específicas da própria tradição cinematográfica, e estica o rastro cultural delas ao colocá-las mais uma vez na tela grande. E é também, é claro, mais uma história de solidão contemporânea, mais uma história de amor condenado, mais uma história de alienação urbana… Meu Amigo Robô só poderia existir dentro das tradições em que se insere, e seria fácil implicar com ele por “não dizer nada de novo” ao continuar todas essas tradições.
Como Berger brilhantemente demonstra com seu filme sem diálogos, no entanto, a chave na arte nem sempre é o que uma obra diz, mas como ela diz.