Frequentemente, quando um diretor faz sua estreia, o filme que resulta desse primeiro trabalho é muito mais referencial, até derivativo, do que poderia ser. Isso é talvez ainda mais verdadeiro quando o estreante em questão é alguém que já está trabalhando na indústria do cinema, em outra função, há algum tempo - caso de Dev Patel, que finalmente conseguiu tirar o seu Fúria Primitiva do papel após quase uma década de desenvolvimento, e quase duas décadas de estrelato em Hollywood. Bom, se você conhece com alguma intimidade a filmografia de Patel como ator, é fácil se transformar naquele meme do DiCaprio durante as duas horas de Fúria Primitiva.
Há algo de Danny Boyle (que dirigiu Patel em Quem Quer Ser um Milionário?) na coloração saturada das sequências nas favelas indianas, embora há de se dizer que Boyle emprestou bastante da linguagem de Fernando Meirelles em Cidade de Deus. A abordagem frontal do “cinema de gênero com mensagem”, e especialmente o olhar sobre a desigualdade social, aproximam Fúria Primitiva de Neill Blomkamp, parceiro do ator em Chappie. Quando o filme flerta com o documental, especialmente ao observar uma comunidade Hijra (termo hindu próximo ao nosso “transgênero”), Patel pega dicas de Michael Winterbottom, que o dirigiu em O Convidado. Até o misticismo em cores quentes de David Lowery, responsável por conduzir Patel em A Lenda do Cavaleiro Verde, faz uma aparição quando o protagonista usa um alucinógeno logo antes da batalha final.
Mas é curioso perceber como Fúria Primitiva faz de tudo isso uma virtude, ao invés de uma muleta. Sua natureza de filme-colagem, seu status como obra de um cineasta buscando uma voz própria em meio às muitas vozes que fizeram raízes em sua psique, só o fazem mais contemporâneo. Conscientemente ou não, Patel dirige aqui um filme de ação perfeito para a era pós-John Wick, pós-RRR, pós-todo o resto que já vimos antes, em escala megalomaníaca, em telas de todo o tamanho. Um filme que, na melhor tradição pop, transforma esse referencial em algo completamente novo.
A chave, nesse caso, é como Patel e seus corroteiristas, Paul Angunawela e John Collee, integram todas as referências a uma história muito específica, que desejam profundamente contar. A trama em si não é complicada: aqui, o protagonista sem nome (Patel) tenta vingar a morte brutal da mãe, que ele testemunhou quando criança, se infiltrando em um clube exclusivo frequentado por vários oficiais corruptos do governo indiano - mas, especialmente, pelo chefe de polícia Rana Singh (Sikandar Kher). O que ele não sabe é que o guru Baba Shakti (Makarand Deshpande), apoiador de um candidato presidencial ultranacionalista, está por trás de toda a falcatrua e fará de tudo para pará-lo.
Nada que Steven Seagal não tenha feito antes, certo? Pois é, mas nunca escapa a Fúria Primitiva a ironia do fato de que Dev Patel não tem nada de Steven Seagal. Na frente das câmeras, ele cria um herói que não dissimula a fragilidade do próprio corpo, e que assume a crueza errática de sua ira - o que, de certa forma, só adoça ainda mais o seu eventual triunfo. É uma performance que não varia muito da angústia muito orgânica que Patel mostrou ser capaz de expressar em outros papéis, mas sem dúvida Fúria Primitiva é o filme que melhor faz uso dessa habilidade do ator, do carisma quase antitético que ele demonstra em sua comunicação fácil, mas nunca vistosa, com a câmera. Eis aqui um homem que não queremos ser, mas que queremos ver vencendo.
A partir disso, Patel trabalha atrás das câmeras para amarrar a identificação do público com o personagem a um ideal de heroísmo muito mais urgente do que aqueles que vemos grandes franquias de ação construindo na atualidade. Fúria Primitiva é bom em entrelaçar sua porradaria, seu impulso de vingança, ao conceito de um mundo dividido entre esferas de poder e esferas sem poder, um contraste herdado da tradição social do cinema indiano, sempre mergulhado no sistema de castas, no passado colonial do país, no ressentimento e nas comunidades paralelas que a história indiana construiu - e que a mitologia hindu reflete.
O filme evoca, assim, a ideia de um herói que nasce das raízes mais profundas dessa mitologia, apelando à ancestralidade para apontar a um futuro mais justo. Um herói que conta entre seus inimigos as corrupções sórdidas que são figurinhas fáceis no cinema de ação B, mas que também colide com a perversidade dos “mercadores da paz”, que pregam a docilidade a um povo oprimido. Lá perto do final, religião, família e justiça social se entrelaçam, inextricáveis, e é aí que o espectador - talvez ainda congelado naquela pose do DiCaprio - percebe que há algo de pessoal, cultural, de profundamente sentido, aqui. E estreante ou não, derivativo ou não, é difícil de argumentar contra um filme assim.