Uma cena do crime bem delimitada, um grupo de suspeitos com motivos de sobra para cometer um assassinato e um elenco estelar. Morte no Nilo, a nova adaptação da obra de Agatha Christie, definitivamente compartilha muitos dos mesmos ingredientes que tornaram Assassinato no Expresso do Oriente um sucesso. Mas há nesta versão da história um elemento que a diferencia de imediato do filme de 2017: o estado de espírito do seu herói.
Ao dar um vislumbre de quem foi Hercule Poirot antes de ostentar seu bigode característico e o título de detetive mais competente do mundo, o filme enfatiza logo nos seus minutos iniciais que este não é só mais um caso na extensa carreira do belga. Nem simplesmente a chance de ter seu ego afagado mais uma vez. Trata-se de uma investigação que envolve interesses e riscos bastante pessoais, e que coloca seu personagem para encarar traumas e, talvez, até criar outros. Justamente por isso que Morte no Nilo cresce não nas reviravoltas e revelações, mas quando Kenneth Branagh toma para si o holofote e deixa seu Poirot vazar para além da sua fama de excêntrico.
É preciso admitir que esta não necessariamente é a primeira impressão quando Branagh aparece em meio às trincheiras, propondo um plano inusitado para combater o inimigo no prólogo deste mistério. Há um estranhamento por causa do cenário de guerra, da época e dos efeitos para rejuvenescer o protagonista -- uma constante em todo o filme que, como Assassinato no Expresso do Oriente, escolhe parecer sintético. Mas a bem da verdade é que o maior desconforto se deve à sensação imediata de que mergulhar na vida passada de Poirot seja contraprodutivo. Por que alguém precisaria saber a origem de um bigode?
De fato, a informação em si não acrescentaria nada a ninguém se ela não se tornasse um símbolo do final da jornada do seu detetive. Expor a razão para seu estilo característico não deixa de ter um nível de ridículo -- nem faria sentido que não fosse assim, considerando que a direção de Branagh testa os limites do caricato --, mas há certamente uma recompensa. Seguindo, então, o exemplo dos seus próprios suspeitos, Poirot desce do seu pedestal confortável e longe de frustrações e se permite ser um pouco mais passional.
Aliás, se a vingança pautava Assassinato no Expresso do Oriente, a paixão é, sem dúvidas, o tema deste mistério. A bordo da luxuosa embarcação que celebra o casamento relâmpago entre a herdeira milionária Linnet Ridgeway (Gal Gadot) e seu marido humilde e charmoso Simon Doyle (Armie Hammer), praticamente todos os convidados estão com a cabeça ocupada com assuntos do coração. Há casais recém-formados, amantes secretos, rejeitados ressentidos e até sogras desconfiadas. As tensões entre eles, porém, são dissimuladas, e permaneceria assim não fosse a chegada da ex-melhor amiga da noiva (e ex-namorada do noivo), Jacqueline de Bellefort (Emma Mackey). E, ainda que Poirot tente acalmar os ânimos dos viajantes, nada é efetivo quando um assassinato põe de vez um ponto final das suas férias.
Até chegar ao crime e aos desdobramentos da investigação, isto é, a parte mais empolgante e tensa da narrativa, Morte no Nilo demora para estabelecer o triângulo amoroso e tem dificuldade para prender a atenção do espectador com o que está acontecendo na tela. É verdade que isso não se deve somente ao ritmo do filme. O mistério por muito pouco não foi eclipsado pelas polêmicas envolvendo Gadot, Hammer e Letitia Wright, que foram manchete sucessivas vezes nos meses que antecederam o lançamento.
Por serem figuras tão centrais da história e alguns paralelos infelizes -- Gadot é comparada à Cleópatra tantas vezes ao longo da trama que chega a ser cômico --, nem sempre é fácil esquecer o que não diz respeito à ficção. Por sorte, são os lampejos da personalidade de Poirot que realmente puxam o olhar de volta à história e, em última instância, permitem que apreciem as ótimas performances de nomes como Mackey e Sophie Okonedo e até a breguice artificial que caracteriza a adaptação.
Morte no Nilo não chega a ser emocionante ou nada de muito excepcional, mas é sem dúvidas mais eficiente e saboroso que Assassinato no Expresso do Oriente. E, dado o contexto turbulento em que chega aos cinemas, isso já é bastante.