Cena de Motel Destino (Reprodução)

Filmes

Crítica

Motel Destino faz noir dos trópicos com doses iguais de humor e horror

Karim Aïnouz traz aventura estética latina para a competição de Cannes

22.08.2024, às 13H16.

Raros são os momentos, em Motel Destino, nos quais não se ouve um gemido, grito ou ranger de molas ao fundo. Enquanto os personagens do cineasta Karim Aïnouz vivem suas vidas e desenrolam seus conflitos nos corredores e salinhas do estabelecimento do título, o filme parece querer nos cutucar com o fato de que outras vidas, outros conflitos e outras catarses estão acontecendo nas beiradas da história que acompanhamos - e que essas outras vidas não podem evitar de se intrometer nas nossas, incomodando ou excitando, criando um clima de precariedade ou de desejo, a depender da sua posição em relação ao voyeurismo. Aïnouz, como artista, não está aqui para julgar, mas só para cutucar.

E é cutucar, mesmo, o que Motel Destino faz de melhor. Cooptando a estrutura narrativa e as obsessões temáticas do film noir, com seu protagonista em fuga de um passado sombrio e a relação amorosa-sexual tóxica na qual ele esbarra durante esta fuga, o longa resgata a perturbação severa que o gênero é capaz de evocar - tudo enquanto distorce e até zomba das convenções visuais dele para localizar sua história muito precisamente no Ceará. E tome Sol à pino, cenários blocados em cores vivas que não fariam feio em um filme de Pedro Almodóvar, iluminação em neon, voos rápidos por um surrealismo que é muito brasileiro, e a obsessão infindável com o corpo suado e desnudo do litoral. 

É um noir dos trópicos, enfim, que a diretora de fotografia Heléne Louvart (A Vida Invisível), o designer de produção Marcos Pedroso (Que Horas Ela Volta?), a montadora Nelly Quettier (Bom Trabalho) e a figurinista Ananda Frazão (Medusa) capturam de maneira intransigente para combinar com o flerte que a história faz com o determinismo, como todo filme do gênero. Heraldo (Iago Xavier) se refugia no Motel Destino para fugir da perseguição da chefona do crime para quem trabalha, após um trabalho que deu errado e custou a vida de seu irmão. É onde ele conhece Dayana (Nataly Rocha) e Elias (Fábio Assunção), casal que administra o local, e se mete na relação violenta dos dois.

Emerge da dinâmica deste “trisal” para lá de relutante um retrato de sobrevivência, de negociação com a ameaça constante da tragédia. Motel Destino não chega a se entregar ao fatalismo, até porque encontra vivacidade de sobra em seus personagens e performances, perversões de chavões do noir para uma realidade contemporânea muito mais complicada, e por vezes mais patética, do que Hollywood seria capaz de aceitar. O bom humor do filme está em contrastar seus momentos mundanos e suas jogadas mais teatrais - a dança desajeitada de Fábio Assunção se transformando na carranca ameaçadora, de olhos sombrios e cabelo bagunçado, de um vilão operático.

E o horror também está aí, é claro, na realidade palpável que existe até no melodrama ao qual Aïnouz e seus co-roteiristas Wislan Esmeraldo e Maurício Zacarias se entregam perto do final. É uma exploração de gênero carregada com a potência típica que existe no melhor da arte latina - uma arte que entende (muito corretamente) os clichês vindos do Norte global como massinha de modelar para construir narrativas inteiramente suas, trágicas ou cômicas em um sentido quase grotesco, mas também absolutamente críveis em sua especificidade, e absurdamente úteis como ferramenta de reflexão para um povo que ainda precisa se olhar muito mais no espelho da tela de cinema.

Nota do Crítico
Ótimo