Li On The Road pela primeira vez não muito depois de ter mudado para Porto Alegre. Eu tinha acabado de começar a faculdade de jornalismo, ainda incerta sobre os rumos que queria tomar. Da leitura de uma edição da coleção L&PM Pocket, impulsionada pela empolgada introdução do tradutor Eduardo Bueno, veio a descoberta dos Beats, principalmente Allen Ginsberg, do jazz, e de um gosto novo por ler, escrever, ver, descobrir.
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Essa é a grande qualidade do livro de Jack Kerouac, a de despertar. Escrito em 1951, a lenda coloca a prosa espontânea parcialmente autobiográfica em um rolo de papel de quase 40 metros, datilografado ao longo de três semanas sob os cuidados de muito café (adoçado com benzedrina) e acompanhado por uma rádio de Bebop (o estilo de jazz frenético nascido da década de 40 que combina improvisação e virtuosismo). A publicação veio apenas em 1957, após inúmeras tentativas frustradas e um longo processo de edição, se transformando não apenas em um marco da Geração Beat - aquela que experimentou, liberou sexualmente, flertou com o budismo, rejeitou o materialismo e transformou a sociedade contemporânea, tornando possíveis muitas das liberdades básicas que desfrutamos hoje -, mas em um acontecimento importante de muitas vidas ilustres, como as de Bob Dylan, Hunter S. Thompson, Tom Waits, Jim Morrison, Francis Ford Copolla, Johnny Depp e do diretor brasileiro Walter Salles.
É desse respeito, dessa noção de antes e depois causada pelo livro de Kerouac, que nasce o Na Estrada de Salles. A versão para o cinema da história de como o alucinado vagabundo de Denver, Dean Moriarty (Garrett Hedlund), mudou a vida de Sal Paradise (Sam Riley), se apresenta orgânica, fiel e inspirada. Da fotografia bela e certeira do francês Eric Gautier (Diários de Motocicleta, Na Natureza Selvagem), da escolha da trilha sonora, ora frenética pelo jazz, ora melancólica como o blues, às atuações de um elenco que se manteve fiel ao projeto por oito anos, o filme é resultado prático do despertar causado pela leitura de On The Road.
Salles e o roteirista Jose Rivera (Diários de Motocicleta) partiram do manuscrito original (publicado apenas em 2007), a versão considerada impublicável por sua ausência de vírgulas, parágrafos e seu conteúdo explícito, filmando a história que Kerouac queria contar. Da edição de 1957 permanecem os nomes dos personagens, que no original recebiam nomes reais - Sal Paradise/Jack Kerouac, Dean Moriarty/Neal Cassady, Marylou/ Luanne Henderson, Camille/Carolyn Cassady, Old Bull Lee/William S. Burroughs, Jane/Joan Vollmer, Carlo Marx/Allen Ginsberg, Terry/Bea Franco. A escolha foi feita pois, apesar da sua inspiração real, Kerouac colocou no papel uma versão muito mais fantástica do que a realidade - "uma mistura do vivido com o imaginado", segundo Salles. A casa do escritor William S. Burroughs (Old Bull Lee no filme), por exemplo, é descrita por Kerouac como uma velha mansão colonial, cercada por um jardim misterioso. A realidade se serve apenas de uma pequena casa de madeira.
A escolha do texto a ser adaptado também pesa na motivação que leva Paradise a pegar a estrada. Na versão mais conhecida, é o divórcio que leva o jovem escritor a partir para Denver em busca de Moriarty. No filme, assim como no manuscrito original, é a morte do pai, o trauma que Kerouac já havia citado em Cidade Pequena, Cidade Grande (escrito entre 1946-1949, publicado em 1950), que desencadeia seu fascínio por Dean e sua relação com a estrada. Também estão presentes a relação com a mãe, a sua ascendência franco-canadense, a religiosidade e a sexualidade reprimida, que teria levado Kerouac ao alcoolismo e à rejeição dos seus antigos amigos ("um bando de comunistas") ao fim da vida. Fidelidade que acaba por retratar uma história de excesso já sabendo seu fim. O resultado é uma melancolia sincera, onde no livro vê-se apenas euforia - o que pode causar estranhamento para alguns.
Ficção e Realidade
Salles também mistura o vivido e o imaginado no seu filme, colocando seu elenco em contato com estudiosos do universo beat e os familiares dos expoentes da geração - como a filha de Luanne Henderson (Marylou, interpretada por Kristen Stewart) e o filho de Neal Cassady. Em cena, vê-se o comprometimento dos atores, em um elenco que impressiona não apenas pela coleção de nomes - Kirsten Dunst, Viggo Mortensen, Amy Adams, Elisabeth Moss, Tom Sturridge, Alice Braga e Steve Buscemi, além dos já citados Hedlund, Riley e Stewart -, mas pela qualidade das suas interpretações, nutridas por uma mistura de encantamento e respeito às pessoas que os originaram.
Mortensen chegou a estudar o que Burroughs estava lendo na época, o francês Louis-Ferdinand Céline e a história dos Maias, o que levou a uma bela cena onde Old Bull Lee mostra aos jovens Paradise e Moriarty o quanto as traduções (e as edições) podem deturpar a obra original. Hedlund, que fora duramente criticado por seu trabalho em Tron - o Legado, aqui surpreende pela sutileza com que constrói um dos personagens mais cultuados da literatura contemporânea (que foi inclusive o papel dos sonhos de Johnny Depp por muitos anos). Seu Dean poderia ser simplesmente o rapaz surtado de Denver, que dirige precisa e perigosamente e atrai igualmente homens e mulheres. Sua sensibilidade, contudo, o transforma genuinamente no louco daquele famoso trecho do livro (louco para viver, louco para falar, louco para ser salvo), aquele que fascinou Kerouac e Ginsberg até o final de suas vidas e que morreu prematuramente em 1968. A mesma sensibilidade acompanha o Carlo Marx/Allen Ginsberg de Sturridge, que começa frágil e ingênuo e vai ganhando firmeza e sofrimento até se tornar o autor de O Uivo (1956), outro marco da Geração Beat. A própria Stewart, sob o peso da franquia que a levou a ser uma das atrizes mais bem pagas de Hollywood, mostra uma entrega franca, revelando uma atriz, sobretudo, corajosa.
O que talvez falte à Na Estrada é não conseguir, enquanto adaptação, vencer a barreira entre inspirado e inspirador. O filme é um retrato sensível do livro e do seu autor, mas não consegue se firmar como obra em si, sendo, ao final, um belo e merecido tributo. Sua realização serve então como um caminho, que pode levar Kerouac e os Beats a uma certa "Geração Crepúsculo", onde a prosa coloquial de On The Road pode mais uma vez transformar os sonhos dos seus leitores em estrada.
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