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Na Estrada | Crítica

Walter Salles e seu tributo à Geração Beat

12.07.2012, às 21H17.
Atualizada em 29.06.2018, ÀS 02H44

Li On The Road pela primeira vez não muito depois de ter mudado para Porto Alegre. Eu tinha acabado de começar a faculdade de jornalismo, ainda incerta sobre os rumos que queria tomar. Da leitura de uma edição da coleção L&PM Pocket, impulsionada pela empolgada introdução do tradutor Eduardo Bueno, veio a descoberta dos Beats, principalmente Allen Ginsberg, do jazz, e de um gosto novo por ler, escrever, ver, descobrir.

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Essa é a grande qualidade do livro de Jack Kerouac, a de despertar. Escrito em 1951, a lenda coloca a prosa espontânea parcialmente autobiográfica em um rolo de papel de quase 40 metros, datilografado ao longo de três semanas sob os cuidados de muito café (adoçado com benzedrina) e acompanhado por uma rádio de Bebop (o estilo de jazz frenético nascido da década de 40 que combina improvisação e virtuosismo). A publicação veio apenas em 1957, após inúmeras tentativas frustradas e um longo processo de edição, se transformando não apenas em um marco da Geração Beat - aquela que experimentou, liberou sexualmente, flertou com o budismo, rejeitou o materialismo e transformou a sociedade contemporânea, tornando possíveis muitas das liberdades básicas que desfrutamos hoje -, mas em um acontecimento importante de muitas vidas ilustres, como as de Bob Dylan, Hunter S. Thompson, Tom Waits, Jim Morrison, Francis Ford Copolla, Johnny Depp e do diretor brasileiro Walter Salles.

É desse respeito, dessa noção de antes e depois causada pelo livro de Kerouac, que nasce o Na Estrada de Salles. A versão para o cinema da história de como o alucinado vagabundo de Denver, Dean Moriarty (Garrett Hedlund), mudou a vida de Sal Paradise (Sam Riley), se apresenta orgânica, fiel e inspirada. Da fotografia bela e certeira do francês Eric Gautier (Diários de Motocicleta, Na Natureza Selvagem), da escolha da trilha sonora, ora frenética pelo jazz, ora melancólica como o blues, às atuações de um elenco que se manteve fiel ao projeto por oito anos, o filme é resultado prático do despertar causado pela leitura de On The Road.

Salles e o roteirista Jose Rivera (Diários de Motocicleta) partiram do manuscrito original (publicado apenas em 2007), a versão considerada impublicável por sua ausência de vírgulas, parágrafos e seu conteúdo explícito, filmando a história que Kerouac queria contar. Da edição de 1957 permanecem os nomes dos personagens, que no original recebiam nomes reais - Sal Paradise/Jack Kerouac, Dean Moriarty/Neal Cassady, Marylou/ Luanne Henderson, Camille/Carolyn Cassady, Old Bull Lee/William S. Burroughs, Jane/Joan Vollmer, Carlo Marx/Allen Ginsberg, Terry/Bea Franco. A escolha foi feita pois, apesar da sua inspiração real, Kerouac colocou no papel uma versão muito mais fantástica do que a realidade - "uma mistura do vivido com o imaginado", segundo Salles. A casa do escritor William S. Burroughs (Old Bull Lee no filme), por exemplo, é descrita por Kerouac como uma velha mansão colonial, cercada por um jardim misterioso. A realidade se serve apenas de uma pequena casa de madeira.

A escolha do texto a ser adaptado também pesa na motivação que leva Paradise a pegar a estrada. Na versão mais conhecida, é o divórcio que leva o jovem escritor a partir para Denver em busca de Moriarty. No filme, assim como no manuscrito original, é a morte do pai, o trauma que Kerouac já havia citado em Cidade Pequena, Cidade Grande (escrito entre 1946-1949, publicado em 1950), que desencadeia seu fascínio por Dean e sua relação com a estrada. Também estão presentes a relação com a mãe, a sua ascendência franco-canadense, a religiosidade e a sexualidade reprimida, que teria levado Kerouac ao alcoolismo e à rejeição dos seus antigos amigos ("um bando de comunistas") ao fim da vida. Fidelidade que acaba por retratar uma história de excesso já sabendo seu fim. O resultado é uma melancolia sincera, onde no livro vê-se apenas euforia - o que pode causar estranhamento para alguns.

Ficção e Realidade

Salles também mistura o vivido e o imaginado no seu filme, colocando seu elenco em contato com estudiosos do universo beat e os familiares dos expoentes da geração - como a filha de Luanne Henderson (Marylou, interpretada por Kristen Stewart) e o filho de Neal Cassady. Em cena, vê-se o comprometimento dos atores, em um elenco que impressiona não apenas pela coleção de nomes - Kirsten Dunst, Viggo Mortensen, Amy Adams, Elisabeth Moss, Tom Sturridge, Alice Braga e Steve Buscemi, além dos já citados Hedlund, Riley e Stewart -, mas pela qualidade das suas interpretações, nutridas por uma mistura de encantamento e respeito às pessoas que os originaram.

Mortensen chegou a estudar o que Burroughs estava lendo na época, o francês Louis-Ferdinand Céline e a história dos Maias, o que levou a uma bela cena onde Old Bull Lee mostra aos jovens Paradise e Moriarty o quanto as traduções (e as edições) podem deturpar a obra original. Hedlund, que fora duramente criticado por seu trabalho em Tron - o Legado, aqui surpreende pela sutileza com que constrói um dos personagens mais cultuados da literatura contemporânea (que foi inclusive o papel dos sonhos de Johnny Depp por muitos anos). Seu Dean poderia ser simplesmente o rapaz surtado de Denver, que dirige precisa e perigosamente e atrai igualmente homens e mulheres. Sua sensibilidade, contudo, o transforma genuinamente no louco daquele famoso trecho do livro (louco para viver, louco para falar, louco para ser salvo), aquele que fascinou Kerouac e Ginsberg até o final de suas vidas e que morreu prematuramente em 1968. A mesma sensibilidade acompanha o Carlo Marx/Allen Ginsberg de Sturridge, que começa frágil e ingênuo e vai ganhando firmeza e sofrimento até se tornar o autor de O Uivo (1956), outro marco da Geração Beat. A própria Stewart, sob o peso da franquia que a levou a ser uma das atrizes mais bem pagas de Hollywood, mostra uma entrega franca, revelando uma atriz, sobretudo, corajosa.

O que talvez falte à Na Estrada é não conseguir, enquanto adaptação, vencer a barreira entre inspirado e inspirador. O filme é um retrato sensível do livro e do seu autor, mas não consegue se firmar como obra em si, sendo, ao final, um belo e merecido tributo. Sua realização serve então como um caminho, que pode levar Kerouac e os Beats a uma certa "Geração Crepúsculo", onde a prosa coloquial de On The Road pode mais uma vez transformar os sonhos dos seus leitores em estrada.

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Nota do Crítico
Ótimo