Assim como em seus dois primeiros filmes, Margin Call - O Dia Antes do Fim e Até o Fim, o diretor J.C. Chandor fala em O Ano Mais Violento (A Most Violent Year, 2014) de um colapso institucional. Seus heróis são homens responsáveis, acima de tudo, por testemunhar esse pequeno fim do nosso ideal de civilização, e seu desafio é sobreviver à desordem sem perder esse ideal de vista.
Abel Morales (Oscar Isaac) é mais um deles. Típico caso do imigrante que se realiza no sonho americano, Abel adquiriu do sogro mafioso uma empresa de transporte de combustíveis em Nova York, e a fez crescer. Ele se prepara para investir uma fortuna num terreno à margem de Manhattan, mas transcorre o ano de 1981, um dos mais violentos já registrados na cidade, e meia-dúzia de fatores - da insegurança nas ruas à concorrência desleal - tornam mais arriscada a aposta de Abel.
"Nós definimos o padrão", dizem os caminhões de Abel. É uma das muitas frases usadas pelo protagonista para expressar sua visão de mundo legalista. Abel se recusa a viver numa fortaleza afastado do mundo, paga pelas coisas que possui e sempre mede suas palavras. É quase uma versão messiânica do self made man, o homem santo cuja missão não é impedir que homens de negócio como ele se tornem bandidos, mas tornar bandidos homens de negócio dentro da lei.
Em Margin Call, quando tratou do colapso financeiro em 2008 numa trama ambientada dentro de um banco de investimento, Chandor reuniu um grupo de personagens que, à parte a vocação para o enriquecimento rápido, não se pareciam com gângsteres. Pois na comparação Margin Call talvez tenha até mais em comum com um filme de máfia - com seus capos ameaçadores, seus conselheiros que fazem jogo duplo e seus tenentes prontos para subir na carreira ou pular do barco, em nome da sobrevivência - do que o próprio O Ano Mais Violento.
Chandor emula a fotografia barroca e as cores amareladas de um O Poderoso Chefão, e é difícil não ver na atuação melancólica de Oscar Isaac um jovem Al Pacino, mas seu filme faz o possível para tomar a contramão do filme de máfia típico, em que a jornada do capitalista contraventor implica a criação de um código próprio de ética e moral, em substituição ao "sistema". Pois sendo O Ano Mais Violento um filme não sobre o indivíduo mas justamente sobre o sistema - especificamente sobre o que torna esse sistema sólido, apesar da ameaça de colapso - não há o que substituir. Ao herói que coube a missão de testemunhar o colapso só resta isso: a sua capacidade de testemunhar.
Talvez por isso Abel Morales passe a impressão, o tempo todo, de ser mero espectador de sua história - fazendo pausas dramáticas em seus diálogos não para constranger o interlocutor, como Abel ensina a seu pelotão de vendas, mas porque represa o tempo inteiro a vontade de resolver as coisas de forma personalista. É uma atuação na base da contenção, como se Tony Montana, o paradigma do imigrante que constrói todo um novo sistema de valores ao seu redor, de repente virasse um homem de negócios legalista, equilibrado e avesso à violência. O Ano Mais Violento deve ser o único filme de máfia em que cenas de barbearia não terminam em degola.
No fim, a fotografia tem menos em comum com o trabalho de Gordon Willis em O Poderoso Chefão do que com os quadros de Edward Hopper, pintor famoso pelas cenas de solidão e melancolia em cenários urbanos, de homens apequenados pelo entorno. Chandor traz um ponto de vista interessante ao gênero, com seus personagens que evitam o clichê da famiglia tradicional (em especial o velho que lega a firma à neta), mas este seu filme de "pós-máfia" não deixa de ser frustrante ao minimizar o peso de traumas do passado e ao colocar a conquista pessoal a serviço da preservação do sistema. Se dependesse dos gângsteres de O Ano Mais Violento o capitalismo certamente teria definhado nos anos 1980.
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